Entre o sentimento de orgulho e de arrependimento, Hygino lembra que o rancho “foi o marco zero da usina”. Convencido pela ideia de desenvolvimento vendida pelo consórcio construtor da Usina Hidrelétrica (UHE) Teles Pires, ele cedeu o espaço do rancho para uma pousada, que hospedou as primeiras equipes da obra, em 2011. Após o barramento definitivo do rio, no início deste ano, “quem está acima das Sete Quedas, não pega mais peixe”, garante Hygino, que prevê o fim da pousada com a subida da barragem da Usina São Manoel, 40 quilômetros abaixo da UHE Teles Pires. A pousada ficará exatamente entre as duas usinas.
“Minha renda média, que era de R$ 2 mil nos 8 meses em que é permitido pescar, caiu pra R$ 588”, lamenta Osvaldo Ribeiro, pescador profissional.
“O Rio Teles Pires está barrento. Nós, cayabis não estamos suportando a sujeira da água que nós tomamos”, denuncia Taravy Kayabi, líder de um dos povos indígenas afetados pela UHE Teles Pires e São Manoel. Além dos cayabis, os apiacás e mundurucus também enxergam riscos à sobrevivência e à cultura caso avancem os projetos de hidrelétricas na Bacia do Rio Tapajós — do qual o Teles Pires é um dos principais afluentes. “Nós, indígenas da região, podemos passar como a cidade de São Paulo, sem água para tomar”, compara o líder em texto enviado ao Ministério Público Federal (MPF) no Pará, Mato Grosso e em Brasília.
No dia 23, o MPF conseguiu na Justiça Federal a suspensão da licença de instalação da Hidrelétrica São Manoel. O Ministério Público alerta que o empreendimento não cumpriu nem a metade das obrigações e contrapartidas necessárias para erguer a barragem. “Essa obra é uma das maiores violências contra povos indígenas no Brasil. E pouca gente conhece. Ela provocará danos irreversíveis, sobretudo à etnia cayabi, cujo território se localiza a menos de um quilômetro da obra”, alerta o procurador Felício Pontes Júnior.
DESMATAMENTO “A gente entende que tem de ser construído, mas sou contra neste local, acabando com matas amazônicas virgens.
Ele ressalta a importância de se manterem alguns rios intactos, para conectar “manchas” florestais importantes para a fauna e a flora. “É uma dupla via de interação: o rio ajuda a manter a biodiversidade das florestas, que garantem a alimentação para os peixes”, explica. Maretti acredita ainda que, por mais que os projetos tenham cada vez mais preocupação em reduzir a área alagada pelas barragens, a pressão gerada pelas hidrelétricas sobre a floresta vai além disso. “Nas duas usinas do Rio Madeira (RO) e de Belo Monte (PA) têm ocorrido um desmatamento acelerado. Esse desmatamento, gerado pela ocupação do entorno das hidrelétricas, pela migração, pela especulação imobiliária, é muitíssimo maior do que o gerado pela obra em si, e pela área alagada pelo reservatório da usina”, completa Maretti.
Usina à base de manobra jurídica
Brasília – “O pessoal tem essa frustração de ter a vitória por um período muito curto. Às vezes, uma decisão favorável é suspensa em menos de 24 horas, o que não é o normal de prazo de apreciação de recurso”, desabafa o procurador da República Marco Antônio Barbosa, do Ministério Público Federal (MPF) de Mato Grosso. Envolvido em diversas ações que questionam o licenciamento das usinas — em grande parte previstas no Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal —, o procurador deixa de antemão muito claro que não questiona as obras. “As fundamentações das ações ou recomendações, em nenhum momento questionam a opção política de fazer hidrelétricas.
Para permitir a continuidade de obras que não têm estudos completos, ou que são contestadas em dezenas de ações do MPF, o governo tem recorrido a um instrumento judiciário criado nos anos 1960, durante a ditadura militar. “Não conseguimos produzir os efeitos das sentenças judiciais (favoráveis ao MPF) por causa de um expediente jurídico chamado suspensão de segurança”, lamenta Barbosa. A ferramenta permite que o presidente de um tribunal decida sozinho contra qualquer decisão de outros juízes, ou mesmo uma turma deles.
Para isso, basta alegar, sem estudos ou detalhamento, riscos à ordem pública ou à economia com a paralisação das obras. Ao todo, as usinas da bacia do Tapajós já precisaram de 12 suspensões de segurança para não ter as obras paralisadas. “Espero que a liminar anunciada hoje (dia 23) tenha melhor sorte que as anteriores”, comentou o procurador da República Felício Pontes Júnior, último a obter uma vitória na Justiça, que ordenou a paralisação das obras da Usina São Manoel, no Rio Teles Pires. .