Jornal Estado de Minas

Construção da Ferrovia do Aço deixou estrada de filhos sem pai

Série de reportagens vai contar a história dos filhos, das famílias e dos impactos gerados pela obra, que teve a construção anunciada há 40 anos e virou sinônimo de desperdício de dinheiro público e mau planejamento.

Daniel Camargos
Daniele de Almeida, na janela, ainda sonha conhecer o pai. Sua mãe, Sônia, conta que sofreu muito com o estigma de mãe solteira. - Foto: Beto Magalhaes/EM/D.A PressPassa Vinte e Coronel Xavier Chaves – Toda vez que Daniele de Paula Almeida escuta o barulho do trem passando ao lado da sua casa pensa no pai, que ela nunca conheceu. Não é à toa. O pai dela trabalhou na construção da Ferrovia do Aço, em Passa Vinte, no Sul de Minas, e assim como outros tantos operários participou da obra da faraônica ferrovia, namorou as moças das pequenas cidades mineiras e deixou filhos pelo caminho. O Estado de Minas percorreu oito cidades de Minas Gerais e do Rio de Janeiro e conta a história dos filhos, das famílias formadas e dos impactos gerados pela obra, que teve a construção anunciada há 40 anos e virou sinônimo de desperdício de dinheiro público e mau planejamento.
 “Nem imagino como ele é”, afirma Daniele, de 30 anos, sobre o pai. Ela é agente de saúde na pequena cidade localizada na divisa com o estado do Rio de Janeiro e estuda Ciências Contábeis na vizinha Barra Mansa (RJ). Daniele diz não ter raiva do pai, que abandonou sua mãe quando soube que ela estava grávida, e deseja conhecê-lo. Bem-humorada, ela brinca: “Mas eu quero um pai legal”.

Renata Aparecida da Silva, de 31 anos, também não guarda mágoa do pai, que abandonou a família para nunca mais aparecer quando ela tinha 8 anos e a mãe, Vânia Aparecida da Silva, hoje com 49 anos, estava grávida do terceiro filho. “Tem 22 anos que ele sumiu, mas eu tenho vontade de encontrá-lo. Não tenho raiva. Ele é meu pai”, afirma a moradora de Coronel Xavier Chaves, no Campo das Vertentes.

O pai de Renata, José Expedito da Silva, de Ouricuri, em Pernambuco, chegou a Coronel Xavier Chaves no final da década de 1970. Namorou Vânia, então com 16 anos, e os dois se casaram. “Quando os peões vieram, minha mãe não deixava eu nem sair de casa. Só podia ir para a rua com ela”, recorda Vânia. Porém, a aproximação com o futuro marido foi inevitável. “O conheci ele no dia do enterro de um peão”, lembra Vânia. A avó de Renata aproveitou a movimentação dos trabalhadores para ganhar dinheiro e lavava roupas para vários, o que facilitou o contato com os forasteiros.

Para se ter ideia do impacto gerado pelas obras da ferrovia, a cidade de Coronel Xavier Chaves não tinha mais que 900 moradores na área urbana no final da década de 1970. “Em 1975 eu tinha um armazém e havia tarde que chegavam mais de 1 mil homens de uma vez. Era uma multidão”, lembra João Batista de Resende, que foi prefeito de Coronel Xavier Chaves entre 1977 e 1983. Ele calcula que cerca de 3 mil trabalhadores se alojaram na cidade, a maior parte em acampamentos.

A cidade, assim como os outros pequenos municípios próximos à Ferrovia do Aço, não ficou marcada apenas pelas mães solteiras. À época as ruas da cidade não eram calçadas e a movimentação dos caminhões para a construção levantavam muita poeira. “Tinham coisas boas também. Quando precisávamos de um caminhão de areia ou brita para uma obra da prefeitura a companhia que fazia a obra ajudava”, destaca o ex-prefeito.

Se em Coronel Xavier Chaves, que tem 3,3 mil habitantes atualmente, o impacto foi imenso, em Passa Vinte, com 2 mil moradores, não foi diferente. José Irineu de Almeida, de 85 anos, trabalhou por 34 anos na Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) e não esquece os anos em que a cidade teve o cotidiano totalmente modificado. “Era gente demais e, principalmente, muitos homens”, pontua. Para que o assédio às moças de Passa-Vinte fosse menos intenso foram criadas duas casas de prostituição em um distrito da cidade. José Irineu recorda que mesmo com essa estratégia foi inevitável que as moças da cidade se relacionassem com os trabalhadores forasteiros.

Maria Sônia de Almeida, de 47 anos, a mãe de Daniele, lembra das festas e da imensa movimentação de trabalhadores na cidade. “Nunca poderia imaginar um movimento daqueles”, afirma. O que Maria também não esquece é o estigma que carregou por muito tempo por ter engravidado, aos 16 anos, e o pai da criança abandonado a cidade. “Aqui (Passa Vinte) é muito pequeno e as pessoas são conservadoras. Todo mundo ficava apontando o dedo. Era difícil até sair de casa”, recorda Maria, que, por sua vez, não deseja encontrar o pai de sua filha.

“Quando engravidei descobri que ele namorava outras moças também”, lamenta. Logo após ter ficado grávida ela soube que, para algumas, ele dizia ter outro nome. Maria só teve certeza do nome verdadeiro quando, após ficar grávida, uma irmã dela foi até o escritório da Andrade Gutierrez, onde ele trabalhava, e confirmou a identidade. A saber: o pai de Daniele se chama João Batista Vieira e é natural de Belo Horizonte.