Jornal Estado de Minas

CHECAMOS

A fotomontagem de uma antiga farmácia de maconha circula com afirmações falsas

A foto de uma farmácia com uma folha de maconha na fachada circula nas redes sociais desde, pelo menos, junho de 2021 e soma mais de 4.200 interações, com afirmações sobre um suposto consumo frequente de cannabis nos séculos XIX e XX.



As publicações alegam que, naquele momento, as farmácias tinham mais de 20 tipos de medicamentos baseados na erva, “um dos maiores produtos plantados e colhidos na época”, e que as indústrias de papel, álcool, tabaco e algodão causaram sua proibição.

Mas especialistas consultados pela AFP asseguraram que essas versões são incorretas. Além disso, a fotografia é, na verdade, a criação digital de um artista.

As mensagens compartilhadas no Facebook (1, 2, 3) acrescentam que “a primeira lei proibicionista” contra a maconha data de 1910 nos Estados Unidos e que “desde o ano de 1850 a 1937, o óleo de cannabis rico em canabidiol foi utilizado como medicamento principal para mais de 100 doenças primárias”. 

Alegações similares circularam no Instagram (1, 2) e em espanhol.





Uma busca reversa pela imagem no Google levou a um artigo do veículo de verificação norte-americano Snopes. O texto credita a foto ao designer gráfico Emmanuel Laflamme, que publicou-a em seu perfil na Deviant Art, uma plataforma para compartilhar trabalhos artísticos, em 16 de fevereiro de 2009.

A imagem é intitulada “Farmácia” e acompanhada pela mensagem “Mesclas, cultura pop e memes”. Na seção de comentários, um usuário perguntou ao designer se podia compartilhar o link da fotografia original. Laflamme respondeu: “Não consigo mais encontrá-lo”.

Outros usuários (1, 2) parabenizaram o autor da imagem pela sua “manipulação” e ele agradeceu a ambos. A descrição do perfil do artista na Deviant Art ainda diz: “Emmanuel Laflamme recicla imagens populares com humor, criando cenas com um forte significado que nos leva a sorrir e a pensar”.



A foto também foi localizada no site do artista, em uma seção dedicada a misturas de imagens, com a legenda “Farmácia - 2009”.

Uma busca na página do designer no Facebook pela palavra-chave “maconha” em inglês levou a uma publicação de 2 de novembro de 2019 com a mensagem: “Quando a sua arte cria confusão suficiente para que o Snopes tenha que esclarecer as coisas”, junto com um link para a verificação.

Contactado pela AFP, Laflamme explicou: “Sou quem acrescentou a folha de maconha na imagem. Infelizmente não me lembro da localização da fonte original. Tentei encontrá-la, mas só aparecia a versão modificada”.

A equipe de verificação da AFP tampouco conseguiu chegar à fotografia original por meio de buscas reversas ou pesquisas no Google usando termos como “farmácia 1900” e “farmácia século 19”.



Cannabis nos séculos XIX e XX


Cannabis é um gênero de três espécies de plantas da família Cannabaceae, cuja origem foi estabelecida na Ásia Central. Um estudo publicado em julho de 2021 sobre a análise dos genomas de plantas de todo o mundo mostrou que seu cultivo começou há cerca de 12 mil anos.

As publicações compartilhadas nas redes sociais asseguram que desde 1850 “as farmácias (drogarias) tiveram em seu crédito mais de 20 tipos de remédios à base de cannabis”.

“Não há nenhuma evidência de que havia dispensários medicinais especificamente de cannabis, era apenas mais um dos remédios”, disse à AFP Nidia Olvera, professora de Antropologia Social com especialização no estudo histórico do uso de substâncias psicoativas no México.

No entanto, Olvera explicou que no século XIX, em países como o México, as farmacopeias, livros que descrevem os usos e características dos medicamentos, indicavam “a cannabis e várias preparações com essa substância como remédio” e que há evidências na imprensa da época sobre “cigarros com cannabis para curar a asma”.



Da mesma forma, receitava-se preparações de maconha com álcool para aliviar dores, mas “também não há evidências de que sua venda era tão comum em farmácias ou de que havia tantos produtos com cannabis. Na verdade, o ‘remédio’ por excelência da época era o ópio”, explicou.

A respeito da afirmação das alegações virais sobre a existência de “mais de 20 tipos de remédios à base de cannabis”, o pesquisador Imer Flores, do Instituto de Investigações Jurídicas da Universidade Nacional Autônoma do México, especificou que “os medicamentos como conhecemos hoje em dia, com fórmulas universais, são muito mais recentes”, mas considerou que a elaboração de preparações a partir da cannabis era comum no século XIX.

Já nos Estados Unidos, “a cannabis estava disponível em farmácias durante o século XIX e início do século XX, mas na virada do século já estava caindo em desuso como medicamento porque era muito difícil determinar doses exatas, uma vez que a cannabis não se baseia em um alcalóide, mas em um canabinóide, e este ainda não havia sido compreendido”, disse à AFP Isaac Campos, professor da Universidade de Cincinnati e especialista em história das drogas ilícitas.



Em 1910, a maconha raramente ia além de ser misturada com álcool para criar uma substância tópica para aplicar nos calos dos pés, acrescentou Campos.

Proibição da cannabis


As publicações também alegam que “desde 1910, a primeira lei proibicionista é dada nos Estados Unidos” e acrescentam: “as indústrias de cultivo de árvores de papel e teares de algodão, viram no cânhamo e na cannabis uma competição difícil de vencer, as empresas de tabaco e fábricas de bebidas juntas trabalharam para erradicar sua produção”.
Um homem fuma um cigarro de maconha enquanto segura um cartaz que diz %u201CLuta pela legalização%u201D, durante um protesto na Cidade do México em 5 de maio de 2007 ( AFP / LUIS ACOSTA)

Na verdade, a primeira proibição da maconha nos Estados Unidos ocorreu no estado de Massachusetts em 1911, e em outros estados que o seguiram em 1913, como a Califórnia. Em nível federal, a maconha foi proibida até 1937.

A teoria de que as indústrias de papel, algodão, tabaco e álcool eram responsáveis pela proibição da maconha, como afirmam publicações viralizadas, “surgiu de um livro conspiratório e não acadêmico chamado ‘O imperador está nu, a conspiração do cânhamo e da maconha’ de Jack Herer”, disse Campos.



Herer foi um ativista pela legalização da cannabis e em seu livro, publicado em 1985, acusou o magnata da mídia William Randolph Hearst de ter promovido a Lei de Impostos sobre a Maconha, de 1937, por supostamente possuir uma “enorme área florestal” para fabricar papel, que teria sido ameaçada pelo papel feito de cânhamo.

Essa hipótese foi rejeitada por Dale Gieringer, diretor da Organização Nacional para Reformar as Leis da Maconha nos Estados Unidos. Gieringer lembrou em um artigo sobre as origens da proibição da cannabis na Califórnia em 1913 que os jornais de Hearst, na verdade, “dependiam fortemente de importações de papel do Canadá”, tendo sido beneficiados pela possibilidade de substitutos de papel mais baratos, feitos de cânhamo.

David F. Musto (1936-2010), historiador especializado em políticas de drogas nos Estados Unidos, também rejeitou teorias sobre o envolvimento de diversas indústrias na proibição da maconha. “Fiz uma revisão e não há evidências de que isso esteja correto (...). Não vejo evidências de que William Randolph Hearst, a empresa DuPont ou a indústria de licor estivessem por trás disso”, disse em entrevista ao Serviço de Televisão Pública dos Estados Unidos.



Óleo de cannabis


As mensagens viralizadas dizem ainda que, “de 1850 a 1937, o óleo de cannabis rico em canabidiol foi usado como o principal medicamento para mais de 100 doenças primárias”.

O canabidiol ou CBD é uma substância química presente no cânhamo que não contém tetrahidrocanabinol ou THC, o ingrediente psicoativo da maconha, e que é utilizada e investigada em alguns casos para fins medicinais.
Um cachorro toma gotas de uma substância medicinal a base de cannabis para tratar dores no quadril e ansiedade, em 8 de junho de 2017, em Los Angeles, Califórnia ( AFP / Robyn Beck)

Olvera considerou a afirmação das publicações viralizadas “um anacronismo total (...) já que o canabidiol não havia sido nem sequer isolado” na época.

Julia Galzerano, médica e presidente da Sociedade Uruguaia de Endocanabinologia, concordou, e disse que o que as publicações alegam “não é real”, pois o canabidiol ou CBD não foi isolado até 1940.

audima