Jornal Estado de Minas

CHECAMOS

Comparar as vacinas contra a covid-19 com pesquisas sobre a aids e o câncer é enganoso

Publicações compartilhadas mais de 73 mil vezes nas redes sociais desde ao menos setembro de 2020 e que voltaram a circular em outubro de 2021 questionam as vacinas contra a covid-19, fabricadas “em apenas 6 meses”, enquanto ainda não há imunizantes contra aids ou câncer, apesar de décadas de pesquisa.



Mas estabelecer um paralelo entre o desenvolvimento das vacinas contra a covid-19 e os tratamentos do câncer e da aids é enganoso, já que se tratam de doenças muito diferentes. As mensagens também alegam que a vacina contra a influenza não existe, embora ela seja aplicada no Brasil há anos.

“APÓS 40 ANOS DE PESQUISA, NÃO HÁ VACINA CONTRA AIDS. APÓS 76 ANOS DE PESQUISA, NÃO HÁ VACINA CONTRA INFLUENZA. APÓS 100 ANOS DE PESQUISA, NÃO HÁ VACINA CONTRA O CÂNCER”, lê-se nas publicações compartilhadas no Facebook (1, 2, 3) desde o último dia 11 de outubro.

O texto continua: “MAS DEPOIS DE APENAS 6 MESES EXISTE UMA VACINA CONTRA UM ‘VÍRUS’ QUE APARECEU ‘DE REPENTE’ E AQUELES QUE QUESTIONAM ESSA VACINA SÃO CONSPIRADORES SEM CÉREBRO”.

O texto, na maioria das vezes sobreposto a uma imagem que mostra um corpo com rosto de caveira mexendo em um caldeirão onde se lê “vacina”, em inglês, e se vê uma marca parecida com o logo da Organização Mundial da Saúde (OMS), também foi difundido no Instagram (1, 2, 3), no Twitter (1, 2, 3) e no Telegram.



Um conteúdo similar circulou em outros idiomas, como em francês e em espanhol, com a alegação de que as vacinas teriam sido fabricadas em três meses.

As publicações viralizadas destacam uma realidade: a corrida pela vacina contra a covid-19 tem se dado em uma velocidade sem precedentes, mas não em seis meses, como afirmam algumas postagens. Após a sequenciação genética do novo coronavírus em janeiro de 2020, as pesquisas para criar uma vacina começaram em fevereiro de 2020. Até a aprovação da primeira vacina, a da Pfizer/BioNTech, passaram-se dez meses.

“Nunca na história a pesquisa de vacinas progrediu tão rapidamente”, declarou o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, no final de novembro de 2020.



A vacina russa Sputnik V começou a ser aplicada em Moscou no dia 5 de dezembro, enquanto a da Pfizer/BioNTech teve o início da aplicação no Reino Unido em 8 de dezembro.

O painel de farmacovigilância da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) mostra que, em outubro de 2021, há oito vacinas com uso emergencial aprovado. Quatro delas estão em uso no Brasil, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): Comirnaty (Pfizer/Wyeth), Oxford/Covishield (Fiocruz e Astrazeneca), Coronavac (Butantan) e Janssen Vaccine (Janssen-Cilag).

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As publicações viralizadas, que demonstram desconfiança nas vacinas para prevenir a covid-19 ao afirmar que não existem até o momento vacinas contra a aids e o câncer, propõem, contudo, uma falsa dicotomia.



Já a alegação de que não há vacina contra a influenza é falsa. Ela existe e foi licenciada para uso na população em 1945. No Brasil, foi incorporada ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) em 1999, “com o propósito de reduzir internações, complicações e óbitos na população-alvo, na época, idosos acima de 65 anos”, informou o Ministério da Saúde ao Checamos.

Em 2021, a 23ª Campanha Nacional de Vacinação contra a influenza contemplou grupos prioritários como “crianças de 6 meses a menores de 6 anos de idade (5 anos, 11 meses e 29 dias), gestantes, puérperas, povos indígenas, trabalhadores da saúde, idosos com 60 anos e mais”, disse a pasta.

Covid-19 e aids: uma comparação falaciosa

As publicações também questionam por que a pesquisa da vacina contra a covid-19 progrediu tão rapidamente, quando quase quatro décadas de estudo não foram suficientes para encontrar uma vacina eficaz contra o HIV.



Comparar “doenças tão diferentes” dessa maneira é “estúpido”, assinalou à AFP o professor Jean-Daniel Lelièvre, chefe do departamento de Imunologia Clínica do Hospital Universitário Henri Mondor e responsável pela pesquisa clínica no Instituto de Pesquisa de Vacinas da França.

“É bastante simples: basicamente temos vacinas para doenças curáveis, ou seja, para enfermidades contra as quais o corpo cria uma resposta imune. Com o sarampo, a influenza, a hepatite B, cria-se uma imunidade natural. No caso do SARS-CoV-2, a cura sugere a geração de anticorpos contra o SARS-CoV-2. Assim, com a vacina, reproduzimos o que a natureza faz, já que sabemos exatamente como o organismo humano se defende diante deste vírus”, explicou o professor Lelièvre.

“Agora, no caso de doenças infecciosas complexas, como a causada pelo HIV, a pessoa não se cura. A resposta imune ao HIV não ocorre, é incompleta. O HIV destrói o sistema imunológico. Por isso não é possível fazer um paralelo entre o HIV e o SARS-CoV-2”, acrescentou.



“O vírus da aids é muito instável, sofre várias mutações, e esse não é o caso do SARS-CoV-2”, afirmou à AFP Serawit Bruck-Landais, diretora do Centro de Pesquisa e Qualidade de Saúde do Sidaction, que assinalou que “existem vários subtipos de HIV circulando, muito diferentes entre si, enquanto para o SARS-CoV-2 existem, por enquanto, no máximo dois subtipos não muito diferentes um do outro”.

Vacinas contra o câncer?

As postagens viralizadas asseguram que não existem vacinas contra o câncer, mas isso é impreciso. Há tipos de câncer para os quais já foram desenvolvidas vacinas, como indica o site da American Cancer Society.

Como explicado nesta seção, existem vacinas que ajudam a prevenir o câncer causado por vírus, como o papilomavírus humano (HPV). A American Cancer Society indica que “vacinar as crianças e jovens adultos contra o HPV ajuda a proteger contra o câncer de colo de útero e outros cinco tipos de câncer”.



Outra vacina preventiva é a da hepatite B (HBV). “As pessoas que têm infecções crônicas (em longo prazo) por esse vírus têm um risco maior de ter câncer de fígado. Receber a vacina para ajudar a prevenir a infecção pelo HBV pode reduzir o risco de que algumas pessoas tenham câncer de fígado”.

No entanto, “nem todos os tumores estão relacionados com uma infecção viral, motivo pelo qual uma vacina não pode preveni-los”, afirmou à equipe de checagem da AFP o oncologista clínico argentino Tomás Soulé.

“O melanoma, por exemplo, tem uma clara relação com a exposição solar e não existe uma vacina que o previna. A prevenção consiste em evitar a exposição ao sol. O câncer de pulmão e o de bexiga estão relacionados com o tabaco e uma vacina tampouco pode preveni-los”, continuou.



Como é possível ler no site do Cancer Treatment Centers of America, “dezenas de cânceres são causados por uma infinidade de mutações genéticas, pelo que é provável que seja impossível desenvolver uma vacina para atacar todas as mutações possíveis”.

E, considerando que as células cancerígenas “são células do próprio corpo que se tornaram rebeldes, muitas células cancerígenas podem se esconder à simples vista do sistema imunológico. É por isso que, inclusive, quando o sistema imunológico é estimulado por certos medicamentos, nem sempre sabe quais alvos deve atacar”, acrescenta o site.

Soulé concorda: “O câncer não é uma só doença, é um conjunto de enfermidades”. “Toda doença oncológica é uma doença genética na qual há uma mutação, um erro no DNA, que faz com que uma célula cresça mais do que o normal, ou morra menos do que o normal. Essa alteração molecular poucas vezes é única. Isso significa que não existe um mecanismo único para desenvolver um tumor, mas múltiplos mecanismos genéticos, e não existe uma ‘chave’ que solucione todo o problema”.



Rapidez no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19

Algumas vacinas, como a Coronavac, foram produzidas com vírus inativados do novo coronavírus, e por isso não oferecem risco de infecção pela doença. “O vírus é cultivado para se multiplicar e, depois, é inativado por meio de calor ou produto químico”, afirma o Instituto Butantan, que desenvolve a vacina.

Outras vacinas contra a covid-19 foram desenvolvidas mediante engenharia genética. São vacinas que, para conseguir que o corpo humano elabore uma resposta de defesa contra o vírus, necessitam apenas reproduzir e inocular material genético do vírus, e não o vírus em si, como acontece com as vacinas clássicas feitas à base de vírus inativos ou atenuados.

Tanto as vacinas feitas à base de RNA mensageiro (Moderna e Pfizer/BioNTech) como as feitas à base de vetores de adenovírus (Gamaleïa e AstraZeneca/Universidade de Oxford) têm o objetivo de conseguir que o nosso corpo fabrique uma proteína de SARS-CoV-2.



“Essa nova proteína estranha será reconhecida pelo nosso sistema imunológico, que ‘montará’ o que é chamado de resposta imune de memória”, explicou à AFP a médica María Victoria Sánchez, pesquisadora do Laboratório de Imunologia e Desenvolvimento de Vacinas do Imbecu-CCT-Conicet da Argentina. “Quando existir um novo encontro com o patógeno, essa resposta imune será capaz de reconhecê-lo e o atacará de forma mais eficaz”, continuou.

Pela sua natureza, essas vacinas facilitam a sua fabricação rápida e em larga escala. Além disso, o SARS-CoV-2 “não é muito diferente do MERS-CoV e do SARS-CoV-1”, que provocaram uma epidemia no sudeste asiático em 2003, assinalou o professor Lelièvre.

“Tínhamos levado adiante toda uma investigação para a vacina do SARS-CoV-1. Chegou até os testes da fase I, mas a doença se deteve, por isso não chegamos aos testes da fase III. Do ponto de vista das vacinas, estávamos em um mundo ideal, porque é um vírus novo, mas muito próximo do outro, sobre o qual tínhamos todo o conhecimento”, assinalou.



Se o SARS-CoV-2 tivesse surgido no início da década de 1980, como o HIV, a pesquisa de vacinas “teria levado muito mais tempo”, disse.

Em resumo, comparar o desenvolvimento das vacinas para prevenir a covid-19 com as pesquisas para prevenir a aids e o câncer é enganoso, pois tratam-se de doenças muito diferentes. Diferentemente do SARS-CoV-2, o HIV é altamente instável e ataca o próprio sistema imunológico, tornando a sua resposta à doença incompleta. No caso do câncer, existem vacinas para prevenir alguns tipos de enfermidades causadas por vírus, mas outros tipos não admitem o tratamento preventivo com vacinas.

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