Jornal Estado de Minas

A piada que pode redefinir limites de liberdade de expressão no Canadá

Em 2010, o humorista canadense Mike Ward estreou um show de comédia stand-up no qual zombava de diversas celebridades, entre elas um jovem cantor, Jérémy Gabriel, que na época tinha 13 anos de idade e já era famoso por ter se apresentado ao lado de Céline Dion e cantado para o papa Bento 16 no Vaticano.



 

Os alvos de Ward - um dos comediantes mais populares de Quebec, vencedor de vários prêmios e conhecido por material muitas vezes ousado - eram o que ele descrevia como "os intocáveis", ou "vacas sagradas", figuras famosas da província canadense das quais, segundo ele, não se podia debochar.

 

Gabriel nasceu com síndrome de Treacher Collins, doença rara que causa deformidades no rosto e no crânio. Ele também nasceu surdo, e usa um implante auditivo. O cantor iniciou sua carreira ainda criança e ficou conhecido como "O Pequeno Jérémy".

 

Na apresentação, Ward ridicularizava a voz e a aparência de Gabriel, descrito por ele como "o menino com um subwoofer na cabeça", em referência ao implante auditivo. Em determinado momento, o humorista dizia que pesquisou na internet a doença do menino e descobriu que ele só era "feio" mesmo.



 

Em parte da piada, Ward dizia que sempre defendeu Gabriel quando as pessoas reclamavam que ele era péssimo cantor, porque achava que o menino tinha uma doença terminal, mas que, quando percebeu que ele não estava à beira da morte, tentou afogá-lo.

 

O show foi um sucesso, e Ward repetiu a apresentação mais de 200 vezes nos três anos seguintes. Em vídeos disponíveis na internet, é possível ouvir o público rindo sem parar.

 

Mas a piada sobre Gabriel acabou virando alvo de uma longa batalha judicial que agora chegou à Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça canadense, em um caso que vem dividindo opiniões e que poderá redefinir os limites da liberdade de expressão no país.

Discriminação

Segundo Gabriel, que hoje tem 24 anos de idade, a piada, amplamente divulgada online, o tornou alvo de bullying na escola, em um momento em que ele estava começando o ensino médio.

 

A deficiência do então adolescente era motivo de risada enquanto outros estudantes repetiam as piadas contadas por Ward. Gabriel entrou em depressão e chegou a pensar em suicídio.



 

Em 2012, a família de Gabriel encaminhou uma reclamação à Comissão de Direitos Humanos e Direitos da Juventude, agência do governo responsável por fazer cumprir o código de direitos humanos da província. A comissão decidiu levar o caso ao Tribunal e Direitos Humanos de Quebec, que trata de casos de discriminação e assédio que ferem esse código.

 

Em 2016, o tribunal decidiu que o show de Ward incluía comentários que configuravam discriminação contra Gabriel com base em sua deficiência, o que fere a lei. Segundo os juízes, o direito à dignidade do cantor, que é protegido por lei, foi violado, e o humorista "excedeu os limites" da liberdade de expressão.

 

O tribunal ordenou Ward a pagar 35 mil dólares canadenses (cerca de R$ 153 mil) ao cantor e 7 mil dólares canadenses (cerca de R$ 30 mil) a sua mãe, Sylvie Gabriel. O humorista entrou com recurso, mas, em 2019, o Tribunal de Apelação de Quebec manteve a decisão, descartando apenas o pagamento à mãe do cantor.



Segundo juízes do caso, o direito à dignidade do cantor, que é protegido por lei, foi violado, e o humorista "excedeu os limites" da liberdade de expressão (foto: Getty Images)

O Tribunal de Apelação disse que sua "intenção não é restringir a criatividade ou censurar as opiniões de artistas", mas que "humoristas, assim como qualquer outro cidadão, são responsáveis pelas consequências de suas palavras quando estas ultrapassam certos limites".

 

Em declaração após a decisão, Ward disse que "comédia não é crime". "Em um país 'livre', não deveria caber a um juiz decidir o que constitui uma piada", afirmou o humorista, que decidiu recorrer à Suprema Corte. Na semana passada, os nove juízes da corte ouviram os argumentos do caso.

Debate

O caso vem ganhando atenção em um momento em que há um grande debate, no Canadá e em outros países como o Brasil, sobre quais devem ser os limites da liberdade de expressão.

 

A decisão da Suprema Corte deverá ter impacto em várias questões no país norte-americano: se um humorista tem o direito de contar piadas ofensivas, quais os limites da liberdade artística e do humor e qual o papel de tribunais de direitos humanos em julgar questões relativas a liberdade de expressão.



 

Os apoiadores de Ward argumentam que o humor - inclusive piadas ofensivas - é protegido pelo direito à liberdade de expressão no Canadá. O advogado Julius Grey, que representa o comediante, salienta que somente discurso de ódio ou formas extremas de pornografia costumam ser excluídos desse direito.

 

Mas a lei na província de Quebec também garante o direito à dignidade e o direito contra discriminação, não apenas com base em deficiência, mas também em raça, cor, sexo, identidade ou expressão de gênero, gravidez, orientação sexual, estado civil, idade, religião, convicções políticas, idioma, origem étnica ou nacional e status social.

 

Para ser considerada discriminação e violar esse direito, é necessário que a piada ou comentário seja grave o suficiente para afetar a dignidade da pessoa. O Tribunal de Apelação concluiu que a piada de Ward teve esse efeito.



 

"Há três conceitos fundamentais que este caso poderá redefinir. Um deles é se meras palavras configuram discriminação", diz Grey à BBC News Brasil, ressaltando que, caso contrário, o Tribunal de Direitos Humanos não tem jurisdição, já que trata somente de casos de discriminação, não de difamação ou calúnia.

"O segundo é o quão ampla é a liberdade de expressão. Mesmo se for discriminação, (o direito à) liberdade de expressão deve prevalecer? E o terceiro é sobre liberdade artística", afirma o advogado do humorista.


Caso será decidido pela Suprema Corte do Canadá (foto: Getty Images)

'Direito de não ser ofendido'

Grey argumenta que o caso não trata de discriminação. "Discriminação é relacionada a bens ou serviços. Você não pode negar acesso a emprego, ou moradia, ou o que quer que seja (com base em discriminação)."



 

O advogado salienta que zombar de alguém não priva essa pessoa de serviços nem fere seus direitos. "Ninguém tem o direito de não ser ofendido", afirma.

 

Mas o advogado Karim Luigi Fezzani, que, ao lado do advogado Stéphane Harvey, representa Gabriel e sua mãe no caso diante da Suprema Corte, diz que se trata sim de discriminação, como concluído pelo Tribunal de Direitos Humanos e pelo Tribunal de Apelação.

 

"O Tribunal de Direitos Humanos expressou claramente que, se não fosse por sua deficiência, Gabriel não teria sido alvo dos comentários de Ward", diz Fezzani à BBC News Brasil.

 

"Quando você ridiculariza uma criança por sua deficiência, quando você diz que ela é feia, quando você sugere que ela é inútil, que ela está prestes a morrer, que todos a consideram digna de pena, você está atacando a dignidade dessa criança por anos no futuro, diminuindo a estima que ela tem por si mesma e, consequentemente, a estima que outros têm por ela."

 

Fezzani diz que o caso pode ter impacto na maneira como os direitos de pessoas deficientes são tratados.

"Em um momento em que pessoas com deficiências já enfrentam numerosas barreiras na sociedade, como exclusão, estigma e discriminação, este caso envia uma mensagem clara a todos os canadenses vivendo com deficiência, de que certas palavras e ações contra eles não serão toleradas."



Autocensura

Humoristas em Quebec e outras partes do Canadá acompanham o caso com atenção. A Associação dos Profissionais da Indústria de Humor é uma das organizações que participam do processo na Suprema Corte, em apoio a Ward.

 

"Se as sanções contra Mike Ward forem mantidas, isso terá um efeito inibidor (sobre o humor)", opina à BBC News Brasil o advogado Walid Hijazi, advogado que representa a associação.

 

Segundo Hijazi, há o risco de que os artistas recorram a autocensura. "Comediantes ficarão com medo de fazer piadas polêmicas, por medo de serem sancionados, processados, de ter de pagar do próprio bolso. O conteúdo vai ficar mais homogêneo."

 

Hijazi ressalta que a comédia tem o objetivo não somente de fazer o público rir, mas também de provocar, e sempre foi uma forma de arte polêmica, testando os limites do que é socialmente aceitável.



Segundo o advogado, para permitir que os humoristas criem conteúdo sem medo, a liberdade de expressão artística deve ser a mais ampla possível.

 

"O limite deve ser discurso de ódio, que, disfarçado de humor, promove violência e ódio. O resto deve ser permitido", afirma.

'Politicamente correto'

Grey, o advogado de Ward, vê problemas para a liberdade de expressão "em um mundo politicamente correto e de conformidade", e questiona o futuro da comédia.

 

"A questão é: poderá essa forma de arte (comédia stand-up) sobreviver se (o humorista) tiver que se perguntar, a cada vez, se alguém vai dizer que sua dignidade foi ofendida?"

 

Mas Fezzani, o advogado de Gabriel, observa que, no Canadá, o direito à liberdade de expressão sempre foi razoavelmente equilibrado com outros direitos, como à dignidade.

 

"A promoção do autodesenvolvimento individual em uma democracia verdadeira como o Canadá, onde a participação de todos é aceita e encorajada, requer o uso ocasional da lei restringindo a expressão para evitar a dor sofrida por grupos que a legislação decidiu proteger", afirma.



 

"Arte não significa permissão para fazer e dizer qualquer coisa. Os artistas devem ser sensíveis à natureza e ao alcance de seus comentários e não tentar se esconder atrás de um manto artístico para justificar a violação dos direitos dos outros."

 

A Suprema Corte deverá chegar a uma decisão nos próximos meses.


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