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Estado de Minas ENTREVISTA

'Mentiras podem matar', diz jornalista filipina, ganhadora do Nobel da Paz

Ativista Maria Ressa critica redes sociais por espalharem fake news e defende jornalismo voltado à democracia


17/10/2021 08:00 - atualizado 17/10/2021 07:59

Jornalista filipina Maria Ressa, ganhadora do Nobel da Paz
Maria Ressa: "As plataformas de mídias sociais fizeram com que todo o conteúdo fosse igual: mentiras e fatos. Seus algoritmos têm sido explorados por líderes populistas e autoritários" (foto: Zoom/Reprodução)

A jornalista filipina Maria Ressa, de 58 anos, é a própria encarnação da palavra coragem. Não à toa o Comitê Nobel Norueguês a escolheu para dividir o Nobel da Paz com o também jornalista russo Dmitry Muratov, de 59. Apenas 137 pessoas receberam o prêmio mais prestigiado do planeta. Ressa tornou-se a primeira filipina e a 18ª mulher em 102 edições do Nobel. Ela conversou com o Correio Braziliense, dos Diários Associados, por videoconferência.

Cofundadora da empresa de jornalismo investigativo digital Rappler, Ressa expôs o autoritarismo crescente do presidente Rodrigo Duterte e a brutal campanha de combate às drogas — 30 mil pessoas foram assassinadas entre julho de 2016 e março de 2019, segundo o Tribunal Penal Internacional. Durante 27 minutos, Ressa mostrou-se articulada e apaixonada pela profissão. “Jornalismo é ativismo. Tenho repetido isso várias vezes”, afirmou.

A jornalista-ativista quase viu a empresa ser forçada à falência, depois que o governo intimidou os anunciantes, e chegou a receber 10 mandados de prisão, além de mensagens ameaçadoras. Nem por isso se intimidou. Extremamente articulada e simpática, Ressa advertiu que “nada pode bater as mentiras que vão em uma lama tóxica que escorre pelas mídias sociais” e atacou as plataformas por terem se transformado em celeiros de fake news. “Mentiras podem matar!”, alertou, ao denunciar governantes autoritários e populistas, inclusive o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Líderes assim recebem poder por um curto período de tempo e, no fim, podem matar o seu povo. (…) Um assassinato por meio do vírus”, disse. Em 10 de dezembro, Ressa e Muratov, editor-chefe do jornal “Novaya Gazeta”, dividirão o prêmio de 10 milhões de coroas (cerca de R$ 6,27 milhões). Confira os principais trechos da entrevista.

Qual é o propósito, o objetivo real do jornalismo?
Acho que o holofote que o Comitê Nobel deu aos jornalistas tem a ver com mostrar o quanto é mais difícil e mais perigoso cumprir com o papel do jornalismo. Vocês devem saber sobre isso também em seu país. A missão e o propósito do jornalismo mudam quando ele é governado por certos padrões e pela ética. Então, qual é a missão do jornalismo? Na maior parte dos países democráticos em que o jornalismo opera como o quarto poder, os jornalistas atuam para o povo de uma democracia. Devemos ter a coragem de fazer perguntas difíceis, de exigir responsabilização de autoridades dos setores público e privado. E cobrar transparência, para que tenhamos a esperança de que possamos ter responsabilização. Fazemos isso em nome do povo ao qual servimos. Porque os fatos, e isso foi o que o Comitê Nobel frisou... Os fatos estão no centro de qualquer democracia funcional.

Que lição é possível extrair da relação das plataformas de mídias sociais com a apuração de fatos?
As plataformas de mídias sociais fizeram com que todo o conteúdo fosse igual: mentiras e fatos. Seus algoritmos têm sido explorados por líderes populistas e autoritários que usam a mentalidade do “nós contra eles” para serem eleitos. Uma vez eleitos, eles começam a colapsar as instituições de dentro para fora. O que isso mostra a nós, jornalistas, é que as histórias que contamos não deveriam ser misturadas com as mentiras, que estão amarradas, subjacentes, e que se espalham mais rapidamente e mais longe do que as histórias que contamos.

No fim das contas, os fatos são bem enfadonhos. Passamos toda a nossa carreira aprendendo a como contar histórias que capturem os interesses e as emoções de nosso povo. Mas nada pode bater as mentiras que vão em uma lama tóxica que escorre pelas mídias sociais, ou em contas privadas, que é a forma como um jornalista é atacado. Mas isso nos mostra que há uma qualidade especial para o jornalista que a maioria dos criadores de conteúdo não teriam. E essa qualidade especial é a coragem.

Quem quer dizer a alguém muito poderoso que ele está errado? Ou dizer: 'Ei, você tem que responder a essas perguntas!'. Pessoalmente, você não quer fazer isso, certo? Porque sabe que esses tipos de líderes autoritários são vingativos. E vão descontar em você. Assim como fizeram com a Rappler. Eu tive 10 mandados de prisão nos últimos dois anos. Mas parte central do jornalista, que é a coragem, o mantém fazendo perguntas, o mantém fazendo reportagens investigativas.Nós falávamos sobre as mentiras que têm sido disseminadas pelas redes sociais.

Qual é a receita para combater as fake news?
Penso sobre três meios. Nós temos os pilares da Rappler. Quando criamos a Rappler, em 2012, vivíamos nas mídias sociais. Era a principal plataforma de distribuição. À medida que as mídias sociais cresceram, o resto das organizações de notícias veio para essas plataformas. Era a ambição dessas plataformas de tecnologia americanas. Um processo, um modelo de negócios ao qual o ex-professor emérito da Universidade de Harvard Shoshana Zuboff chamou de capitalismo de vigilância.

Que nossos dados, tudo o que publicamos, são aproveitados por uma máquina de aprendizado para criar um modelo de nós, que, ainda que sem sentido, seja melhor do que nós. E isso tudo é aglutinado pela inteligência artificial para servir ao momento mais fraco de uma propaganda, isso é o anúncio publicitário, ou ao governo, e esta é a nova propaganda.

Qual é a diferença?
Cada uma é como se fosse um ciclo. É como se fosse uma rede, de fato. Se você clicar em um link que diz que você gosta do governo, você é levado mais fundo até o final, porque a meta é mantê-lo no site. Qual é a solução? Três pilares: tecnologia, jornalismo e comunidade. O primeiro: a tecnologia. A Rappler permanece como parceiro da checagem de fatos do Facebook, enquanto há apenas dois parceiros checadores de fatos filipinos.

Também sou parte do Fórum sobre Informação e Democracia, baseada em Paris. Em novembro de 2020, apresentamos 250 soluções técnicas e uma dúzia de soluções estruturais. Acho que esse jogo de moderação de conteúdo é um caminho errado trilhar. Essa plataforma deveria usar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em alguns países, mesmo no Brasil, os jornalistas são desacreditados pelo presidente e por seus apoiadores. Como é possível reverter essa tendência? O Nobel pode ajudar nisso?
Absolutamente! Isso vale tanto para vocês quanto para nós, filipinos. De novo, a tática de chamar o jornalismo investigativo de “fake news”. Como o poder foge da responsabilização. Eu espero que... Deixe-me dizer o que sempre digo. A real baixa com a mudança... Quando os jornalistas perdem os poderes para a tecnologia, as baixas reais são os fatos. Porque os algoritmos das plataformas de mídias sociais tornam os fatos discutíveis. Eles tratam os fatos da mesma forma que tratam mentiras.

De fato, eles favorecem as mentiras, em termos de distribuição. Aqui vou parafrasear um comediante, Sacha Baron Cohen, quando ele proferiu uma antidefinição. Ele disse que isso não é uma questão de liberdade de expressão, como as plataformas sempre dizem. Isso é um tema de liberdade de alcance.

Como avalia o impacto da disseminação de mentiras?
É fato que as mentiras duram menos, mas se espalham mais rápido e mais distante do que os fatos nas redes sociais. Quando são usados, os algoritmos nos dividem e nos radicalizam. Isso é o que vemos. Quando você não tem fatos, você não pode ter verdades. E se você não tem essas coisas, você não pode ter confiança. E a confiança é a cola que mantém todos os seres humanos unidos. Se não tivermos isso, será impossível lidarmos com as crises existenciais; não apenas com a democracia, mas também o coronavírus.

O Brasil não tem feito um bom trabalho quanto ao coronavírus. Líderes fortes também não o fazem, porque, para o coronavírus, você deve ter uma abordagem que envolva toda a sociedade. Você não pode criar conteúdo divisivo, não pode tornar os fatos discutíveis. Você não pode manipular as pessoas. Olhem as mudanças climáticas. Teremos que lutar contra isso, juntos. E é aqui onde a liderança se destaca.

A mentalidade de “nós contra eles”, a qual manipula fatos... Líderes assim recebem poder por um curto período de tempo, e, no fim, podem matar o seu povo, não por meio da brutal guerra às drogas da qual o presidente Duterte é acusado, mas um assassinato por meio do vírus. Mentiras podem matar! Por isso, defendo responsabilizar as plataformas e os governos.

Qual é a opinião da senhora sobre o presidente Jair Bolsonaro e as ameaças à liberdade de expressão?
Acompanho líderes como o presidente Bolsonaro, o presidente Duterte (Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas) e o ex-presidente Donald Trump (dos Estados Unidos). Eles possuem um estilo de liderança parecido.

O que temos visto novamente são pessoas em todo o mundo exigindo melhorias, especialmente em relação ao coronavírus. Os líderes populistas e autoritários podem ser eleitos, explorando as fragilidades das plataformas das redes sociais... No caso do presidente Duterte, ele também cometeu erros no establishment político.

O problema é que, quando você chega ao poder, se você não governar com fatos ou evidências razoáveis, você não pode governar nesta época precária de coronavírus. (risos). Não tenho uma opinião, porque não estou fazendo reportagens sobre ele, mas eu certamente posso ver.

Eu gostaria de citar uma pesquisa sobre propaganda computacional da Universidade de Oxford. Em janeiro deste ano, o estudo concluiu que um exército barato nas mídias sociais fez com que a democracia retrocedesse em 81 países. Em 2017, eram 27 países. Agora, são 81. Isso é o que as plataformas de redes sociais têm feito, mas serei otimista. Elas mostraram à humanidade que temos mais em comum do que diferenças em idiomas, culturas e nações. Porque as mesmas plataformas são manipuladas pelos brasileiros da mesma forma que pelos filipinos. Isso é da natureza humana. O problema é de escopo global.
 
 


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