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Estado de Minas CARACAS

A vida em meio aos tiros nas comunidades de uma Venezuela empobrecida


26/07/2021 11:06

Um militar venezuelano se protege atrás de um veículo blindado. Há 48 horas ele ouve o zumbido de tiros de fuzil disparados de uma comunidade carente de Caracas. Alguns passaram bem perto. "Este é um país em guerra", resume com desânimo.

Agentes de segurança e uma quadrilha de criminosos que controla a perigosa comunidade da Cota 905 e mais outras três na zona oeste da capital venezuelana se enfrentaram intensamente por pouco mais de dois dias até que a mobilização de 2.500 homens ocupou a área conflagrada. O balanço: 22 "delinquentes" e quatro membros das forças de segurança mortos.

Não está claro quantos civis morreram ou ficaram feridos nestes confrontos no país que tem uma das mais altas taxas de insegurança do mundo, com 12.000 mortes violentas ao ano, segundo o Observatório Venezuelano da Violência: são 45,6 mortes por 100.000 habitantes, sete vezes a média mundial.

O número alarmante corresponde principalmente ao crime organizado, que floresceu em base ao narcotráfico, à extorsão e ao sequestro, mas também à corrupção e à má gestão do Estado.

E o fenômeno das "megabandas" - grupos criminosos integrados de 150 a 300 pessoas - cresceu na última década, agravando a situação que já começava a piorar nos anos 1990.

"Temos uma fauna criminosa de delinquência organizada violenta, estruturas de crime em zonas urbanas, rurais, ideologizadas e não ideologizadas, pelo controle territorial, controle da população e economia criminosa", explica à AFP o criminologista Fermín Mármol.

Ao coquetel de violência somam-se coletivos "ideologizados", surgidos na era chavista que, segundo o governo, defendem a cidadania, mas a oposição e diversas ONGs os acusam de ser paramilitares a serviço do poder, que controlam certas áreas desfavorecidas.

- "Não somos ladrões" -

Quarta, 7 de julho: são registrados os primeiros disparos. Membros da quadrilha da Cota 905, que inclui o midiático "Koki", por quem o governo oferece uma recompensa de 500.000 dólares, determinam que os moradores fiquem em casa, proíbem a livre circulação e ameaçam a polícia com represálias se entrarem em seu território.

Do alto de uma favela montanhosa com ruas de terra e casas precárias, disparam contra edifícios, carros e pedestres. Os criminosos se protegem em trincheiras reforçadas com sacos de areia, que lhes permitem ver quase tudo, enquanto acionam suas armas de guerra.

Naquela quarta-feira, jovens com megafones pediam aos motoristas que dessem meia-volta. Ao virar a esquina, há um pequeno exército, invisível da avenida.

Chamá-lo de exército não é um exagero: seus integrantes portam fuzis de assalto, metralhadoras, pistolas novas e reluzentes, carregadores cheios, binóculos, rádios portáteis. São uma unidade de combate.

Outros rapazes vigiam os tetos e terraços dos prédios vizinhos.

A princípio são muito agressivos e tiram os equipamentos dos jornalistas da AFP no local. Devolvem tudo pouco depois de uma inspeção exaustiva... E alguma negociação.

"Não somos ladrões, digam isso lá fora", comenta um deles, falando por todos. "Não queremos a polícia aqui, a coisa é bem simples. Eles cometem atos de violência aqui. Não entrem, isto não é deles, não têm que vir pra cá".

A poucos metros, um corpo jaz no asfalto com as costas ensanguentadas. Um homem não identificado tenta ver se está vivo cutucando com o pé o cadáver, que ficará no mesmo lugar pelas próximas 24 horas.

Este tipo de "megabanda" migrou de uma "criminalidade nômade" para uma "sedentária", na qual passaram a controlar áreas com o dinheiro obtido da extorsão, do sequestro e do tráfico de drogas, explica Mármol. Esta "economia criminal" permitiu-lhes ganhar musculatura financeira e comprar armas.

A organização de "Koki", por exemplo, controla o setor de El Cementerio, assim chamado pela vizinhança com um gigantesco cemitério onde costumam atirar do alto do morro corpos de pessoas, supostamente executadas.

- "Onde você está, demônio?" -

Aos tiros, os criminosos bloquearam o tráfego em algumas ruas e autoestradas. Várias pessoas foram feridas por balas perdidas. Sente-se medo.

"A gente não se acostuma" à violência, diz Deny Rodríguez, de 44 anos e que trabalha na região. "Sentimos medo, o perigo se sente, você não sabe se vai chegar".

"Acordo pedindo a Deus que seja um dia calmo, que não se agitem à noite", afirma outro morador que pede para ter sua identidade preservada. "Você dorme e não sabe se uma bala vai entrar... É uma situação super-exaustiva. Tenho pesadelos".

Um oficial do corpo de elite da Polícia Nacional não se deixa intimidar pelos tiros. "É uma queda de braço, uma medição de forças", diz.

"Temos que subir o morro para tirá-los de lá (...) Haverá mortos dos dois lados, mas somos mais fortes, venceremos", acrescenta, falando de "danos colaterais".

O oficial mostra com orgulho no painel de seu carro-patrulha o livro "A Arte da Guerra", de Sun Tzu.

Quinta-feira, 8 de julho: Após uma noite de tiroteios e balas traçantes, a polícia cerca quatro comunidades. Os criminosos não param de atirar na direção de áreas desertas, onde só há efetivos das forças de ordem.

A guerra invade as ondas do rádio. Um policial e um criminoso se enfrentam na mesma frequência. A discussão é surreal.

- Koki, onde você está, demônio? (O policial usa a mesma cadência dos criminosos)

- Policial maldito, vamos te matar!

- Desça se for homem!

- Suba você e vai ver.... Você e sua família!

- "Ideia romântica" -

As ameaças não detêm as forças de segurança que invadiram a área durante a noite.

"Atiravam de todos os lados. Atiravam em todos os lados", diz uma mulher. "Ratatatatatá", continua, imitando o barulho de uma rajada de tiros. "Nunca tinha visto isso aqui e eu me criei aqui".

A mulher mora com a família em um "rancho", como são chamadas na Venezuela as casas pobres, geralmente de tijolos aparentes, tábulas e teto de zinco.

"As balas atravessam o rancho. Nos enfiamos em uma casa de blocos, éramos uns 50: crianças, mulheres e alguns homens. Esperamos a noite toda até que esta manhã acalmou e saímos", continua.

"Os policiais falaram atravessado conosco esta manhã: 'Ontem estavam agitados...'", lembra. "Explicamos que só queríamos sair para comprar comida para nossos filhos".

Segundos depois, constata: "é a primeira vez na história da Cota que a polícia entra", diz, às gargalhadas, enquanto os policiais apreendem carros, motos e gasolina em uma casa próxima ocupada pela quadrilha, cujos líderes conseguiram fugir.

A ausência da polícia nos grandes cinturões de pobreza tem tempo.

Em 2013 foram criadas as chamadas "zonas de paz", nas quais a polícia se comprometia a não entrar nas comunidades em troca do compromisso das quadrilhas de cessarem suas atividades criminosas.

Foi uma "ideia romântica", mas um grave erro que permitiu aos criminosos prosperar, avalia Mármol.

As quadrilhas começaram a impor sua lei em sentido estrito naquelas áreas, continua o especialista. "Elas instauraram as normas, a hora limite de festas, as horas de visitas para pessoas de fora do bairro, resolveram os problemas da vizinhança".

Embora tenham prosperado em meio à pior crise da Venezuela em sua história contemporânea, estas estruturas criminosas surgiram na época da maior bonança petroleira, "pois a institucionalidade neste país desmoronou", observa Mármol.

Muitos dos recrutados são jovens seduzidos por dinheiro e armas. "Qualquer coisa pode impressionar um menino de 13, 14 anos...", comenta um ativista social à AFP.

- Informantes e taxas -

Assim como o narcotraficante Pablo Escobar pagava pela educação, alimentação e atendimento médico de famílias na vizinha Colômbia, Ronna Rísquez, membro da ONG Monitor de Vítimas, lembra que os grupos criminosos venezuelanos começaram a "ajudar as comunidades, a lhes oferecer coisas que o Estado não lhes dá mais... Isso faz com que exista certa simpatia".

Enquanto as quadrilhas exercem um controle ferrenho, executando os "sapos" (informantes), punindo os que não pagam a "vacuna" (imposto de proteção) ou quem atravessa seu caminho, tendem a não assediar as pessoas do seu bairro.

"A verdade é que eles não se metem contigo se você não se meter com eles", responde. "Eles nos deixam em paz".

Mármol cita números impressionantes: a Venezuela aparece entre os 20 primeiros países com maior tráfico de drogas e entre os 15 mais corruptos, enquanto a impunidade supera os 90%.

"Estimamos que na Venezuela haja pelo menos 18.000 estruturas do crime", das quais 6.000 se dedicam a crimes não violentos (fraudes, furtos, corrupção) e 12.000 a atividades violentas, indica Mármol, que afirma existirem, por exemplo, mais roubos violentos de carros do que furtos.

Dias antes da operação na Cota 905, a polícia tentou, em vão, desarticular uma quadrilha em Tejerías, pequena localidade situada 50 km a sudoeste de Caracas.

A resposta da quadrilha de El Conejo (O Coelho) foi a mesma que na Cota. "Os criminosos tinham uma vista (posição) melhor. Ficaram atirando durante horas", disse Salvador Milde, trabalhador de uma padaria de 18 anos.

"O que dá medo agora é o silêncio!".

- "Círculo vicioso" -

É difícil estimar quanto dinheiro a indústria do crime organizado movimenta no geral, mas calcula-se que sejam "dezenas de milhões de dólares", diz um policial.

"Com esse dinheiro, compram armas e veículos de luxo, e equipam suas casas", às vezes com jacuzzis ou discotecas.

A criminalidade também afeta a economia, afugentando investidores e turistas, que se recusam a viajar ao país, apesar de suas praias espetaculares e outras áreas naturais deslumbrantes, afirma Mármol.

Por enquanto, as autoridades se dão por satisfeitas de terem ocupado a Cota, e inclusive acusam a oposição, sem provas, de se aliar aos criminosos.

Mármol acredita que uma abordagem claramente policial leva a um "círculo vicioso" que não vai acabar até que o Estado se faça realmente presente, com serviços públicos ausentes hoje. Se não, "quando a polícia vai embora, outra estrutura criminosa assume", adverte.

Enquanto isso, os moradores da Cota fazem o que podem para ficar de fora do alcance dos tiros.

"Tem tiros duas vezes por semana", diz Jesús Rey, técnico de refrigeração de 40 anos. "Um apartamento em outro lugar é difícil e muito caro. Não gosto muito de viver aqui, mas já me acostumei. Foi o que me coube".


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