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Estado de Minas KOBLENZ

A busca tenaz por justiça dos exilados sírios na Europa


09/03/2021 06:59

Em 19 de agosto de 2020, na cidade de Koblenz, oeste da Alemanha, a 3.000 km de Damasco, o refugiado sírio Wassim Mukdad viu "uma luz na noite" da Síria.

Na Alta Corte Regional de Koblenz, Wassim Mukdad, 36 anos, falou publicamente sobre a tortura que sofreu em um centro de detenção do regime, depois de ser preso em setembro de 2011 em Duma, onde pretendia participar em uma das manifestações brutalmente reprimidas que pediam a saída do presidente Bashar al Assad.

O depoimento funcionou "como uma terapia", explica. Na sala de audiências, Mukdad descreveu os três "interrogatórios" que sofreu, com os olhos vendados, uma costela fraturada e os pés lacerados, na prisão de Al Khatib em Damasco.

No primeiro julgamento no mundo pelos crimes atribuídos ao regime sírio, testemunhar curou feridas abertas desde partiu para o exílio em 2014, primeiro para Gaziantep, Turquia, e depois Berlim.

"Finalmente tive a sensação de que minha história importava, que não havia sofrido os abusos em vão", conta à AFP Mukad, um dos exilados que recorreram à justiça europeia para que os crimes em larga escala na Síria não fiquem impunes.

Há quatro anos, quase 100 refugiados, apoiados por uma ONG de Berlim, o Centro Europeu para os Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR), denunciam altos funcionários sírios na Alemanha, Áustria, Noruega e Suécia. Investigações também estão em curso na França.

Em toda a Europa, os sírios, ONGs e especialistas da ONU reúnem depoimentos, analisam fotos, vídeos e arquivos sobre um dos conflitos mais bem documentados da história. E perseguem os torturadores que se passam por refugiados, tentando ocultar seu passado obscuro.

- Mil pessoas ligadas ao regime -

De acordo com os ativistas, as pessoas vinculadas ao regime seriam mil no continente. Entre eles, segundo a oposição austríaca, estaria um ex-general da Segurança do Estado de Raqa, Khaled al Halabi, ao qual Viena concedeu asilo.

Em 2020, os investigadores alemães prenderam nas proximidades de Frankfurt um médico sírio suspeito de torturar feridos em um hospital em Homs. Dois primos de uma vítima, refugiados na Europa, identificaram o suspeito.

Os esforços dos sírios têm mais sucesso na Alemanha, que abriga a maior parte da diáspora na Europa.

O tribunal de Koblenz acaba de pronunciar uma condenação histórica de um ex-agente do serviço de inteligência sírio por cumplicidade em crimes contra a humanidade.

Este tribunal pode anunciar um segundo veredicto no fim do ano contra Anwar Raslan, ex-coronel de inteligência acusado pela morte de 58 detidos na prisão de Al Khatib, para onde Mukdad foi enviado.

- Jurisdição universal -

Os sírios se baseiam no princípio de "jurisdição universal" que permite julgar uma pessoa por graves delitos cometidos em qualquer parte do mundo.

Atualmente, esta é a única possibilidade de julgar crimes na Síria devido à paralisação da justiça internacional, afirma Catherine Marchi-Uhel, que lidera o Mecanismo Internacional, Imparcial e Independente (MIII), encarregado pelas Nações Unidas de investigar os crimes neste país.

"O Conselho de Segurança da ONU pode encaminhar uma situação ao Tribunal Penal Internacional (CPI). Em 2014 houve uma proposta de resolução que foi bloqueada pelo uso do direito de veto por Rússia e China", recorda a magistrada francesa.

Em 2018, com base na jurisdição universal, Alemanha e França emitiram ordens de prisão internacional contra Jamil Hasan, próximo a Assad e diretor até 2019 da inteligência da Força Aérea. Paris também iniciou ações contra Ali Mamluk, supervisor do Departamento de Segurança.

Mas para o advogado Patrick Kroker, que representa as partes civis em Koblenz, muitos países europeus resistem a atuar por medo de denúncias "politicamente motivadas".

Para Mukdad, tudo começou em janeiro de 2019, no Görlitzer Park, em Berlim, onde conheceu a advogada síria Joumana Seif, que apresentou uma denúncia por estupro e abusos sexuais nas prisões da Síria.

Seif perguntou se ele estava disposto a apresentar testemunho e uma semana depois Mukdad foi ouvido pela polícia alemã.

Muitas vítimas, no entanto, permanecem caladas para não colocar suas famílias na Síria em risco ou evitar a recordação de feridas.

O mais ilustre dos "caçadores de torturadores" está em Berlim.

O advogado Anwar al Bunni, que fico preso por cinco anos na Síria, conhece bem Anwar Raslan, responsável por sua detenção em Damasco em 2006. Quase uma década depois, ele o encontrou em Berlim, diante de um alojamento de solicitantes de asilo.

"Eu disse a mim mesmo que o conhecia. Mas era impossível ter certeza", recorda. Ele o viu de novo em março de 2015 em uma loja e o reconheceu. "Mas na época eu não tinha ideia do que poderia fazer contra ele".

Em junho do ano passado, Raslan compareceu ao banco dos réus e Bunni foi uma das testemunhas.

- Ponto de inflexão -

Para este defensor dos direitos humanos o julgamento de Koblenz "marcou um ponto de inflexão". "Os sírios começaram a recuperar a esperança ao ver que a justiça atua. Agora temos muitas pessoas que desejam falar".

Em Paris, o advogado Mazen Darwish, que também ficou detido na Síria, faz uma busca similar com seus "investigadores" do Centro Sírio para os Meios de Comunicação e a Liberdade de Expressão (SCM). Com outras duas ONGs, ele apresentou denúncias na Alemanha e França por ataques químicos atribuídos ao regime de Assad.

Além dos depoimentos, reunir provas é vital nestes processos. Antes de se reunir com o fundador da Comissão Internacional para a Justiça e Responsabilidade (CIJA), o canadense Bill Wiley, a pessoa deve prometer não revelar o nome da cidade onde a ONG arquivou mais de um milhão de documentos que o regime sírio deixou abandonados em prédios, no caos da guerra.

"Chegamos a cordos com grupos armados de oposição para que não os destruam", explica Wiley, de 57 anos.

"Nossas equipes estavam próximas das operações e correram para recuperar os documentos ou seus contatos nos serviços de inteligência", conta o jurista, que trabalhou com procuradores do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia e Ruanda.

- Retirar os documentos da Síria -

Quase 50 colaboradores da CIJA, com orçamento financiado por Estados Unidos e União Europeia, trabalham no país e correm muitos riscos. "O mais perigoso é retirar os documentos da Síria", afirma Wiley. Os analistas depois identificam "os altos funcionários nas estruturas de comando", explica.

A ONG anexou ao caso Raslan dois relatórios de investigação e afirmou que desde 2016 recebeu 569 pedidos de 13 países sobre 1.229 pessoas vinculadas ao regime.

França, Alemanha, Holanda, Suécia, Bélgica e Suíça têm policiais especializados em perseguir estes suspeitos, e os países cooperam em suas operações. Raslan e outros dois suspeitos foram detidos em uma investigação franco-alemã.

"Visto o alcance dos supostos crimes e o número de pessoas (...) é evidente que iniciativas judiciais puramente nacionais são insuficientes", destaca Marchi-Uhel.

Na comunidade síria, alguns relativizam o alcance dos processos, que até agora afetaram apenas subalternos do regime.

Mukdad retornou a Koblenz para acompanhar o veredicto histórico no fim de fevereiro. Ele chegou cedo para garantir um lugar entre o público. Ao ouvir o resultado traduzido em árabe, sentiu "alívio".

"Mas isto é apenas o começo. Porque nós queremos Bashar al Assad e seu círculo", afirmou.


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