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Estado de Minas TRÍPOLI

Líbia vive o caos 10 anos depois da Primavera Árabe


10/02/2021 15:24

Dez anos após a revolta apoiada pela OTAN na Líbia por fim à ditadura de 42 anos de Muammar Kadhafi, o país continua a ser palco de conflitos e caos, com uma população cada vez mais empobrecida, apesar da riqueza do petróleo.

O processo de reconciliação organizado pela ONU gerou esperanças cautelosas de que o último cessar-fogo traga uma paz duradoura, embora o país esteja dividido em dois campos rivais com suas próprias milícias, mercenários e apoios externos.

Desde 2011, a queda da Líbia na anarquia tornou o país o principal centro de tráfico de migrantes no Norte da África, de onde dezenas de milhares de pessoas tentam chegar à Europa em perigosas viagens de barco.

Junto ao horror das dezenas de afogados no Mediterrâneo, há também os abusos e torturas nos campos de detenção para migrantes controlados pelas milícias e a descoberta de valas comuns de líbios nas areias de campos de batalha recentes.

"Dez anos após a revolução, a Líbia está ainda mais desfigurada como Estado do que nos tempos de Kadhafi", explica Emadeddin Badi, analista do grupo não-governamental Global Initiative, com sede em Genebra.

Uma década depois, a chamada Primavera Árabe trouxe apenas destruição e morte, ao invés da liberdade e progresso esperados, como aconteceu com a Síria e o Iêmen devastados pela guerra.

"A situação é catastrófica para a população devido a repetitivos conflitos e divisões", ressalta Mazen Kheirallah, de 43 anos, que mora e trabalha em Zaouia, a oeste da capital Trípoli.

"A crise do novo coronavírus piorou a situação", acrescentou este funcionário da Companhia Líbia de Eletricidade.

Somado a isso está a inflação galopante e uma economia destruída.

"Com os preços em alta, não podemos continuar vivendo com dignidade", defende.

- Una década de guerra -

Majdi, um dentista de 36 anos, lembra a "faísca" do levante iniciado em Benghazi, no leste da Líbia, em 2011, quando a onda expansiva de revolta que começou na Tunísia se espalhou por toda a região.

Foi então que "percebi que estávamos vivendo no terror sem saber", conta ele, pedindo que seu nome completo não fosse publicado.

Na Líbia, a revolta popular - apoiada por bombardeios aéreos da OTAN, liderada pelos Estados Unidos, Reino Unido e França - terminou no final daquele ano com a morte de Kadhafi, que foi capturado e morto em uma tubulação de esgoto.

O fim de sua ditadura de 42 anos gerou um caos que devastou a região ao inundá-la com armas e milicianos que, com o passar dos anos, deixou a Líbia, um país de sete milhões de habitantes, sob o controle de dezenas de milícias.

Os extremistas também aproveitaram o vácuo de segurança, e o grupo Estado Islâmico organizou ataques em Sirte, na costa central, contra turistas na Tunísia em 2015 e 2016.

Salima Younis, uma divorciada de 57 anos que sobrevive como secretária em meio período em uma escola de Trípoli, afirma que passou esses anos "tentando sobreviver todos os dias, literalmente se esquivando de balas".

A pequena casa que construiu foi praticamente destruída pela guerra em três ocasiões e, sem meios para reconstruí-la novamente, vendeu o terreno e mudou-se para um apartamento.

Antes de 2011, tinha "trabalhado por mais de 20 anos, ganhando um salário decente, junto a companhias petroleiras estrangeiras que já deixaram o país e nunca mais voltarão", ressalta.

- Centros de poder rivais -

A Líbia está agora dividida em dois campos rivais baseados nas principais regiões da Tripolitânia, no oeste, e da Cirenaica, no leste, que já eram centros de poder antes mesmo da criação do Estado líbio na era colonial.

No oeste, o Governo de Acordo Nacional (GNA), reconhecido pelas Nações Unidas, instalou-se em Trípoli em 2016. É apoiado militarmente pela Turquia e pelo Catar.

O leste é controlado por um governo eleito pelo Parlamento, que não reconhece o GNA, e é apoiado pelo militar Khalifa Haftar - que conta com o apoio dos Emirados Árabes Unidos, Egito e Rússia.

As forças de Haftar cercaram Trípoli por 14 meses, mas tiveram que se retirar no início do ano passado, após o apoio da Turquia ao GNA.

Em um dos legados macabros da guerra, mais de 120 corpos foram exumados de túmulos em Tarhuna, a sudeste de Trípoli, antigo reduto de Haftar.

O governo americano de Joe Biden pediu a retirada imediata da Rússia, Turquia e outras forças estrangeiras que operam na Líbia, de acordo com o tratado de cessar-fogo.

Mas cerca de 20.000 mercenários e milicianos estrangeiros permanecem no local, apesar de terem até 23 de janeiro para deixar o país.

Provedores militares russos do Grupo Wagner, que apoiam as forças de Haftar, cavaram trincheiras no sul de Sirte, segundo a CNN, a partir de imagens de satélite.

- Avanços? -

Depois de anos de impasse, nos últimos meses houve, conforme definido pelas Nações Unidas, "avanços tangíveis" nas negociações entre as diferentes facções líbias e um aumento tímido da produção de petróleo.

Na semana passada, negociadores líbios reunidos em Genebra elegeram um novo primeiro-ministro, Abdul Hamid Dbeibah, que será responsável pela preparação das eleições nacionais de 24 de dezembro em meio a enormes desafios.

Embora a ONU queira que os líbios decidam seu futuro, nenhuma solução parece factível sem o acordo das potências estrangeiras que se juntaram à luta com soldados, drones e petrodólares.

"A situação se estabilizou na superfície", acrescentou Badi, alertando contra o otimismo excessivo em um país que viu várias iniciativas internacionais de paz fracassarem.

O que está acontecendo agora, alerta, "é produto de uma relutância momentânea de prosseguir com a guerra, em vez de um desejo genuíno de chegar a uma solução política".

- "As pessoas sofrem" -

O cessar-fogo na Líbia restaurou alguma aparência de normalidade, mas a vida diária em Trípoli é obscurecida por apagões frequentes, falta de combustível e restrições financeiras.

A pobreza cresceu com o impacto da covid-19, em um país com as maiores reservas de petróleo da África, mas com um sistema de saúde público em ruínas.

O setor de energia é responsável por 60% do Produto Interno Bruto e em outro momento financiava um generoso estado de bem-estar.

Mas a guerra causou paralisações prolongadas e danos à infraestrutura de produção de petróleo ou simplesmente acabou com ela.

No ano passado, grupos armados leais a Haftar bloquearam a produção e as exportações dos campos e terminais mais importantes, exigindo uma distribuição "mais justa" da receita ao GNA.

Haftar concordou em interromper o bloqueio em setembro, e em dezembro a produção subiu para 1,2 milhão de barris por dia, embora ainda longe dos 1,5 milhão da época de Kadhafi.

Para o pesquisador da Global Iniciative, Jalel Harchaoui, a Líbia registrou progressos, mas ainda enfrenta enormes desafios políticos.

"Em um nível estritamente técnico, o número de líbios mortos diariamente caiu muito", explicou ele à AFP.

Mas, há um questionamento: "Houve progresso no nível político? Saímos do perigo? De maneira nenhuma".

"Tudo pode acontecer. A população está extremamente farta. As elites são bastante indiferentes ao sofrimento do povo".

Majdi afirma que apesar das dificuldades no país, não se arrepende do levante.

"Embora depois de 10 anos haja guerra, violência e confusão, não me arrependo de ter apoiado a revolução. Foi necessária e ainda acredito nela", resume.


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