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Estado de Minas WASHINGTON

Donald Trump, do sonho ao pesadelo americano


18/01/2021 08:47

Quando Donald Trump espiar o gramado da Casa Branca pela última vez a bordo de seu helicóptero na quarta-feira, os estragos de sua Presidência serão inegáveis.

O showman de cabelos tingidos, bronzeado artificial e um talento para se conectar com as multidões assumiu o mandato quatro anos atrás, fazendo em seu discurso inaugural a promessa de que poria fim à "carnificina americana".

Mas Trump, que se autodenomina um "gênio" único, capaz de fazer o que nenhum presidente conseguiu, se transformou em um que deixou uma verdadeira chacina para trás.

A bordo do Marine One, Trump, de 74 anos, vislumbrará uma capital transformada em um acampamento armado, no rastro do caos deixado por seus apoiadores em 6 de janeiro.

Soldados da Guarda Nacional com fuzis automáticos se espalham por toda a cidade. Barreiras, mais comumente vistas em cidades como Bagdá, bloqueiam ruas desertas.

Mais tropas estão mobilizadas agora em Washington do que no Afeganistão. São americanos defendendo americanos de outros americanos.

E quando vir a cúpula branca do prédio do Capitólio, Trump poderia se lembrar que, quando assumiu a Presidência, em 2017, os republicanos controlavam a Casa Branca e as duas câmaras do Congresso pela primeira vez em uma década. Nada, aparentemente, poderia ficar em seu caminho.

"Nós vamos vencer tanto que vocês vão ficar cansados de vencer", costumava dizer a seus apoiadores.

No entanto, na manhã de quarta-feira, Trump deixará a cidade acumulando derrotas.

Ele é o presidente de um único mandato, marcado pela façanha de enfrentar um impeachment duas vezes. E os democratas, não os republicanos, agora estão no controle da Casa Branca e das duas casas do Congresso - em boa parte graças ao papel de Trump na perda de dois assentos republicanos praticamente certos na Geórgia.

Mas nem tudo é culpa de Trump.

A pandemia de covid-19, surgida na China e que chegou aos Estados Unidos e à Europa há um ano, foi um desastre inesperado que muitos outros países ricos também lutam para conter.

E esta pandemia - que deixou nos Estados Unidos quase 400.000 mortos - provocou ondas de desemprego, arruinou empresas e exige inacreditáveis volumes de dinheiro dos contribuintes para manter a economia funcionando.

Embora Trump seja acusado de má gestão da crise sanitária, provavelmente nenhum presidente poderia ter resistido a um tsunami de más notícias como este.

Contudo, Trump chegou garantindo ser diferente. Alguém à parte.

"Não esperto", como se vangloriou em 2018, "mas genial".

- A princípio, eles riram -

Em 2016, muitos americanos literalmente riam da ideia de Trump ocupar a Casa Branca.

Com seu improvável penteado esculpido em laquê, sua famosa dieta à base de 'fast food' e o acompanhamento obsessivo dos programas de televisão, este nova-iorquino de fala rápida e um usuário compulsivo do Twitter chegou ao cargo rejeitado por muitos como um ato de circo político.

Naquela eleição extraordinária, no entanto, o político neófito derrotou Hillary Clinton, uma influente democrata cuja vitória parecia certa.

E como a personificação humana de seus arranha-céus envidraçados, Trump logo se distinguiu em meio ao establishment de Washington, imprimindo sua marca espalhafatosa e nacionalista em tudo o que tocou.

Quanto mais seus adversários tentavam contê-lo, mais ele parecia prosperar.

Uma investigação de dois anos sobre a interferência russa nas eleições de 2016 e seus vínculos com a campanha de Trump confirmou um comportamento perturbador, mas terminou em um anticlímax.

Então, quando os democratas lançaram o primeiro processo de impeachment, em 2019, o Partido Republicano, que no passado chegou a pressionar desesperadamente para impedir a candidatura de Trump, o apoiou totalmente. E e ele foi absolvido com facilidade.

Ao mesmo tempo, o tipo de agitação de bastidores que poderia fazer afundar uma Presidência comum - batalhas judiciais com uma estrela pornô, acusações de receber funcionários do governo em seus clubes de golfe em troca de grandes benefícios, a prisão de seu advogado - apenas alimentou a poderosa combinação de Trump de reclamações e agressões.

Transformando o Twitter em uma arma e aparecendo com seu boné de beisebol vermelho com a inscrição MAGA (Make America Great Again) em um permanente espírito de campanha, Trump foi à guerra não apenas contra seus críticos, mas contra quase todas as instituições americanas.

Pesos-pesados dissidentes da Casa Branca foram demitidos abruptamente. Os jornalistas se tornaram "inimigos do povo", os serviços de Inteligência e o FBI foram demonizados como um "Estado profundo". Adversários no Congresso foram rotulados várias vezes de "mentirosos", "loucos" e traidores.

Como Trump tuitou em 2012, "quando alguém me ataca, eu sempre revido, só que 100 vezes mais".

É "um estilo de vida!", completou.

- Nunca houve ninguém como ele -

No cenário internacional, a performance foi a mesma.

Jogando fora décadas de ênfase na construção de coalizões, Trump transformou as alianças dos Estados Unidos em parcerias de negócios implacáveis.

Parceiros amistosos como a Coreia do Sul, a Alemanha e o Canadá foram acusados de tentar "nos explorar". Ao contrário, inimigos e rivais dos Estados Unidos, como a Coreia do Norte e a China, foram convidados a negociar em iniciativas diplomáticas inovadoras, embora inconstantes, nas quais Trump desempenhou o papel principal.

Na verdade, esta foi a única constante.

No exterior e em casa, tudo, em toda parte, sempre teve a ser com o grande homem, sua esposa, a ex-modelo Melania, seus filhos ambiciosos e sua aparentemente profunda crença em sua superioridade.

Ele se autodenominava "o escolhido". Promovia sua "grande e incomparável sabedoria". Disse que "com exceção do falecido grande Abraham Lincoln, eu posso ser mais presidencial do que qualquer presidente que ocupou este cargo".

Trump disse muitas coisas sobre si mesmo. Muitas delas - a equipe de checagem de dados do jornal Washington Post contou mais de 30.00 alegações falsas ou enganosas - eram inverdades.

Uma alegação deste tipo, no entanto, é difícil de contestar: "nunca houve um presidente como o presidente Trump".

- Herói da classe trabalhadora -

Antes de 2016, Trump só era conhecido pelo personagem cruel no comando do 'reality show' "O Aprendiz" e por desenvolver ou emprestar seu sobrenome a prédios de luxo e clubes de golfe.

Politicamente, sua principal contribuição foi impulsionar a teoria da conspiração, considerada racista por muitos, de que seu antecessor, Barack Obama, não tinha nascido nos Estados Unidos e que, portanto, foi um presidente ilegítimo.

No entanto, em 2016, este político amador sentiu o pulso do país, identificando o crescimento do ressentimento da classe trabalhadora após anos de declínio industrial e rápida disseminação de normas social-liberais.

Marqueteiro brilhante, Trump se aproveitou do poder do Twitter, Facebook e de uma Fox News favorável para se vender a si mesmo aos que ele chamou de "homens e mulheres esquecidos" dos Estados Unidos.

Sim, ele é o arquétipo da elite, com acesso a jatos particulares, namoradas modelos, vários casamentos e torneiras de ouro no banheiro.

Mas nas orgulhosas comunidades do cinturão da ferrugem, sua promessa de restaurar os empregos em fábricas e minas de carvão encontrou eco. Seu apelo brutalmente franco de encerrar as "guerras estúpidas sem fim" no Iraque e no Afeganistão ressoou profundamente. Sua promessa de colocar "os Estados Unidos em primeiro lugar" e erguer um muro na fronteira com o México animou eleitores brancos frustrados.

Nestas decadentes cidades manufatureiras, quanto mais "não presidencial" Trump soasse, melhor. Quanto mais ele provocasse ultraje, quanto mais ele soasse como um 'outsider' - como um deles -, melhor.

Como Trump costumava dizer a seus apoiadores da classe trabalhadora, "nós somos a elite".

- Homem forte -

Ainda que com sobrepeso e avesso à prática de exercícios físicos, Trump é um amante do MMA, do boxe e, especialmente, do espalhafatoso e cômico exibicionismo violento da luta livre profissional.

Os chamados homens fortes do mundo parecem despertar nele o mesmo fascínio.

Embora tenha entrando em confronto com os antigos aliados democráticos dos Estados Unidos, Trump se deu surpreendentemente bem com autocratas e ditadores, do presidente turco Recep Tayyip Erdogan ao russo Vladimir Putin.

Ao tratar do líder norte-coreano Kim Jong Un, um dos maiores repressores do planeta, Trump falou inclusive de "amor".

O presidente Jair Bolsonaro, um admirador declarado da ditadura militar, adota um estilo populista tão próximo ao de Trump que foi apelidado de "Trump dos Trópicos".

- Apenas brincadeira? -

Segundo seus críticos nos Estados Unidos, a maior preocupação era que Trump desejasse ser como estes homens.

Acadêmicos escreveram sobre como a evolução de Trump como político se espelhou em países distantes com "regimes híbridos", onde as instituições democráticas existem apenas como fachada.

Adam Schiff, líder da primeira equipe democrata encarregada do impeachment, descreveu Trump como "perigoso". Outro democrata, Jerrold Nadler, o chamou de um "ditador" em busca de se tornar "todo-poderoso".

Trump, como é de seu estilo, desfrutava da polêmica, constantemente brincando - ao menos ele dizia estar brincando - sobre mudar a Constituição para permanecer no poder. "Isso me deixa louco", disse ele, demonstrando contentamento.

- Queda livre -

E então 2020 chegou.

Trump recebeu o ano novo com uma festa extravagante em seu clube de golfe em Mar-a-Lago, na Flórida, sem dúvida esperando se reeleger com facilidade em novembro.

A economia estava forte, seu domínio no Partido Republicano e do ecossistema da mídia de direita era quase total. Tendo criado algo não muito longe de um culto à personalidade, ele construiu uma base eleitoral que, embora representasse menos de metade do país, era certa de votar.

Os democratas, enquanto isso, estavam desorganizados. Ao longo dos meses seguintes, seu amplo campo de pré-candidatos afunilou até a escolha de Joe Biden, um homem que é a personificação do establishment de Washington que Trump dizia combater.

Trump entrou em campo com uma fúria de tirar o fôlego, pintando o ex-vice-presidente de Barack Obama como um político ultrapassado, idoso, se não descerebrado. Evidentemente, ele esperava que Biden, que fez 78 anos após a eleição, simplesmente entrasse em colapso.

Quando a covid-19 apareceu, Trump fez o que pôde para fingir que nada estava acontecendo. Imagens de pessoas adoecendo não cabiam na imagem brilhante que ele desenhava no ano pré-eleitoral.

Mas por mais que Trump desejasse, por mais que tenha feito alegações enganosas e por mais que culpasse a imprensa, o vírus simplesmente continuou se disseminando.

O homem mais autoconfiante do mundo finalmente encontrou um oponente ao qual não pôde controlar.

À medida que a tragédia escalava, os métodos conservadores de Biden, sua mensagem centrista tranquilizadora e a recusa em cair nas provocações de Trump começaram a aparecer como uma alternativa real.

Até mesmo os ataques de Trump a Biden como um líder pouco enérgico que não podia deixar seu reduto em Delaware saíram pela culatra: Biden simplesmente lembrou aos americanos que estava em isolamento com eles - mostrando-se como um líder responsável que iria "curar" a nação.

Trump ria das pessoas que usavam máscaras. Biden vestiu uma.

Em outubro, Trump foi hospitalizado com covid-19, admitindo posteriormente ter quase morrido.

- Plano B -

À medida que sua sorte foi mudando, Trump acenou com o plano B: se perdesse as eleições de 3 de novembro, ele não admitiria, alegando terem sido fraudadas.

O plano era tão ultrajante que, como ocorreu várias vezes antes, muitos pensavam que Trump não estivesse falando sério, achavam que ele só estava brincando ou exagerando.

Mas durante meses, Trump preparou o terreno para uma teoria conspiratória que ele usaria para justificar seu desafio sem precedentes à democracia - os democratas estariam armando uma fraude e o uso crescente de votos pelos correios, devido às restrições impostas para conter a covid-19, seria a principal ferramenta.

E quando os resultados saíram, Trump puxou o gatilho.

"Se você contar os votos legais, eu venci facilmente. Se contar os ilegais, eles podem tentar roubar esta eleição de nós", disse ele na Casa Branca logo após a eleição.

Nos dois meses seguintes, os advogados de Trump recorreram a diferentes tribunais pelo país com ações alegando cédulas falsas, máquinas manipuladas e supostas trapaças no meio da noite nos centros de votação.

Enquanto isso, Trump usou seu considerável poder - uma audiência maciça no Twitter, a Fox News, a Casa Branca e o avião presidencial Air Force One para repetir as alegações dos advogados uma e outra vez, levando seus apoiadores à revolta.

Quando os tribunais rejeitaram em massa suas ações por considerá-las sem base, Trump recorreu à Suprema Corte. Lá, ele também teve suas alegações rejeitadas.

Quando perdeu na Geórgia, um estado republicano, Trump exigiu uma nova contagem. Ele conseguiu duas.

E quando os resultados continuaram chegando inalterados, ele ligou para o alto oficial eleitoral do estado, exigindo-lhe que encontrasse votos extras.

A maior fonte de poder de Trump e inclusive sua energia pessoal sempre veio de seus apoiadores. Então, talvez não fosse de surpreender que o clímax de seus esforços frustrados para reverter o resultado das eleições devesse se centrar em um comício para uma multidão.

Em 6 de janeiro, na National Mall, Trump instou a multidão de apoiadores a marchar rumo ao Congresso, onde os legisladores estavam naquele momento certificando a vitória de Biden.

"Vocês nunca vão recuperar nosso país com fraqueza", proclamou Trump. "Demonstrem força".

Nas horas que se seguiram, a marca de Trump, do nós contra eles, ou dos "homens e mulheres esquecidos" vingando-se das "elites", atingiu um clímax selvagem e sombrio.

Cinco pessoas morreram, inclusive um policial. O santuário da democracia americana foi profanado. A certificação de Biden foi interrompida.

No entanto, a desonra se seguiu enquanto Trump se transformava da personalidade mais dominante dos Estados Unidos em um pária.

O Twitter suspendeu sua conta, os doadores cortaram suas contribuições e o ultrapoderoso líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, o deserdou. Seus próprios aliados o abandonaram ou excluíram. E ele enfrenta um impeachment. De novo.

- Juventude dourada -

A incomparável jornada de Donald John Trump começou em 14 de junho de 1946, no Queens, na cidade de Nova York.

Ele foi o quarto de cinco irmãos, filhos do rico desenvolvedor imobiliário Fred Trump e de Mary Anne MacLeod Trump, uma imigrante escocesa.

Enviado para uma academia militar privada para amadurecer na época do ensino médio, Trump desfrutou, contudo, de uma juventude dourada, obtendo um título de administração de empresas na Wharton School, da Universidade da Pensilvânia. Como muitos jovens privilegiados de sua época, ele encontrou várias formas de ser dispensado de lutar na Guerra do Vietnã.

Ao entrar para a empresa da família, Trump começou com o que ele chamou de um "empréstimo muito pequeno" de seu pai, de US$ 1 milhão. Alguns informes, no entanto, estimam que o valor foi 10 vezes maior.

Trump assumiu a empresa em 1971, mudando a sede para Manhattan e lançando sua persona do mais famoso playboy bilionário dos Estados Unidos.

Além de um negócio estável de construção de arranha-céus, cassinos e campos de golfe, de Nova Jersey a Mumbai, ele se tornou o longevo coproprietário dos concursos de beleza Miss USA e Miss Universo.

Por trás da fachada de sucesso, no entanto, há uma sequência de falências, processos judiciais e empréstimos elevados. Trump foi longe para omitir esta imagem menos glamourosa, quebrando a tradição presidencial e se recusando a divulgar sua declaração de rendimentos.

Em setembro do ano passado, o jornal The New York Times noticiou ter tido acesso à declaração e que, incrivelmente, Trump rotineiramente evitou pagar quase a maioria de impostos federais.

A notícia provocou um enorme escândalo nesta Presidência sem precedentes. No entanto, foi esquecido logo depois, ofuscado pela próxima novela, e a seguinte, a seguinte, até o desastre final.

Muitos gostam de chamar Trump de presidente de 'reality show', o que ele não considera um insulto.

Mas em 3 de novembro, os americanos decidiram cancelar a próxima temporada.

Ele ainda tem muitos milhões de seguidores. E sem dúvida ainda tem jeito com a multidão.

Por enquanto, no entanto, assim como outros atores sem trabalho, Donald Trump terá que esperar pelo próximo papel.


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