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Estado de Minas DOR E SAUDADE

Para além dos números: ausências causadas pela COVID-19 na América Latina

Paulo, de Belo Horizonte, Hugo, da Cidade do México, Franklin, de Ciudad Delgado, e Oscar, de Buenos Aires: histórias que deixaram algumas das quase um milhão de vítimas mortas na pandemia


25/09/2020 15:25 - atualizado 25/09/2020 17:10

Familiares falam da dor e da saudade pela perda de entes queridos para a pandemia de COVID-19(foto: Ernesto Benavides, Ronaldo Schemidt, Pedro Pardo, Yuri Cortez, Alfredo Estrella, Celso Roldan, Guillermo Arias/AFP)
Familiares falam da dor e da saudade pela perda de entes queridos para a pandemia de COVID-19 (foto: Ernesto Benavides, Ronaldo Schemidt, Pedro Pardo, Yuri Cortez, Alfredo Estrella, Celso Roldan, Guillermo Arias/AFP)
Uma cadeira desocupada, uma guitarra em silêncio, uma foto. Estes objetos cotidianos falam da vida e do vazio deixados por aqueles que se foram vítimas do novo coronavírus. Até agora, a pandemia da COVID-19 deixou quase um milhão de mortos no mundo.

Nesta reportagem, a AFP retrata algumas dessas ausências, por meio dos objetos e ambientes dos mortos, compartilhados por seus familiares.

Paulo, uma guitarra e um sofá -

A epidemia foi severa com a família de Paulo Roberto, um aposentado de 75 anos. De suas quatro filhas, duas adoeceram com COVID-19 e apenas uma delas conseguiu escapar. Sua esposa também adoeceu e foi internada na UTI, mas acabou se recuperando.

O próprio Paulo, amante da música que tocava vários instrumentos, morreu com o vírus. Foi em junho.

Em sua casa em Belo Horizonte, no sudeste do Brasil, sua guitarra azul ainda está pendurada em uma parede de pedra, que junto com sua poltrona favorita atestam que ele aproveitava sua aposentadoria.

"Ele ficava o tempo todo no sofá da sala, onde assistia filmes, documentários e dormia todos os dias", disse à AFP Maria Cândida Silveira, que compartilhou meio século de sua vida com ele.

Uma dor muito profunda, um buraco, uma ferida que não cicatriza: Maria Cândida tem dificuldade em encontrar palavras para descrever a sua ausência.

"Às vezes você lembra pequenos detalhes, momentos que passamos juntos, momentos felizes, mas de longe essa saudade dói. É uma ferida que vai melhorar, mas não vai sarar."

Há também a "lembrança" da sua música, "todas as canções que ouço", acrescenta esta senhora de 68 anos, "sobretudo as mais velhas que gostava de tocar e cantar".

E o mísero consolo de ter conseguido realizar o seu maior desejo antes de partir: despedir-se da bisneta Dudinha.

"Do meu telefone fiz uma videochamada e ele estava sentado na cama, rindo e brincando com a bisneta, conseguiu se despedir dela", conta.

Foi a última vez que Maria Cândida falou com ele: "Achei que ia conseguir, mas logo ele entrou em coma." Um sono do qual não voltou.

Familiares tiveram que fazer enterros rápidos e íntimos por causa da pandemia(foto: Pedro Pardo/AFP)
Familiares tiveram que fazer enterros rápidos e íntimos por causa da pandemia (foto: Pedro Pardo/AFP)
- Pétalas e aplausos para Hugo -

Sobre sua cama, continuam intactos um cobertor estampado com bolas de futebol e, junto à cabeceira, uma almofada bordada com a frase "Penso em você". Ao lado, um pássaro na cor turquesa.

Um crucifixo permanece na parede de tijolos. Seu quarto é um espaço emprestado por uma escola primária de Xochimilco, onde seu pai é porteiro.

Ali, Hugo López Camacho, um maqueiro do Hospital 20 de Novembro da Cidade do México, vivia com a mãe, a irmã e o cunhado, mais os sobrinhos.

Ele faleceu de COVID-19, aos 44 anos, nesse centro de saúde, após subir e descer seus andares levando pacientes por 14 anos. O carro que levou seu corpo partiu em meio a uma corrente humana formada por seus colegas, que se despediram entre pétalas e aplausos.

Primeiro, vieram o estado gripal e a dor de cabeça; depois, a dificuldade de respirar, relata sua família, que ainda não entende como Hugo sucumbiu. Ele se cuidava muito, não fumava, nem bebia, e levava uma vida tranquila - afirmam.

No final de abril, ele desmaiou ao chegar ao hospital. Esse foi o último dia que sua mãe o viu. Ao saber que seria intubado, ele ligou para se despedir.

"Ele sabia o que ia acontecer", diz a irmã.

Duas semanas mais tarde, Hugo faleceu. Crematórios superlotados forçaram uma espera de dias para sua cremação, uma alternativa contrária às ideias tradicionais de seus familiares. Quando a pandemia passar, eles levarão suas cinzas para descansar com as de suas avós em um túmulo familiar.

As ausências sentidas em objetos, locais e situações momentâneas para quem fica(foto: Ernesto Benavides, Ronaldo Schemidt, Inti Ocon, Jose Sanchez Lindao, Yuri Cortez, Orlando Sierra, Raul Arboleda, Mauro Pimentel, Guillermo Arias/AFP)
As ausências sentidas em objetos, locais e situações momentâneas para quem fica (foto: Ernesto Benavides, Ronaldo Schemidt, Inti Ocon, Jose Sanchez Lindao, Yuri Cortez, Orlando Sierra, Raul Arboleda, Mauro Pimentel, Guillermo Arias/AFP)
- Todos os dias, o café de Meco -

Para Franklin Américo Rivera, fotojornalista salvadorenho de 52 anos que cobriu a fonte legislativa, o pesadelo começou no dia 22 de junho com uma faringotonsilite e, logo depois, uma infecção urinária.

O "El Meco", como o chamavam, costumava partilhar a mesa com a irmã Delmi e com o sobrinho David, a quem ensinava a comer feijão com pão, sua comida preferida.

Mas um raio-X revelou suspeitas de coronavírus e ele decidiu se isolar em sua própria casa. Sua outra irmã, Geraldina Juárez (41), lembra do dia em que "ele acordou mais triste e muito cansado".

"Ele não conseguia andar muito, então passou o dia em sua cadeira, que colocou no pátio", à sombra de uma árvore.

Naquela mesma noite, a falta de ambulâncias, uma tempestade e a saturação do sistema de emergência cuidaram do resto.

Sem atendimento, ele faleceu no meio-dia seguinte. "Não podemos descrever esse grande vazio", diz Geraldina.

Sua mãe, Victoria del Carmen, 79, "continua servindo-lhe sua xícara de café todas as manhãs", diz ela.

Eles sentem falta de suas comidas favoritas, da música que ouviam, dos filmes que assistiam à noite.

Sentem saudades de vê-lo pedalando a bicicleta ergométrica, que agora parece estranha para a modesta casa de Ciudad Delgado, município próximo a San Salvador.

Quando a dor aperta, uma montanha de credenciais de imprensa armazenadas em uma caixa serve para rever seu rosto.

Em algumas das fotos, ele parece quase uma criança. "Ninguém acredita que ele não está mais entre nós." Lá fora, sob a árvore, estática como a bicicleta, a cadeira azul permanece.

Amigos, parentes, companheiros: perdas irreparáveis nas vidas de pessoas próximas às vítimas(foto: Ernesto Benavides/AFP)
Amigos, parentes, companheiros: perdas irreparáveis nas vidas de pessoas próximas às vítimas (foto: Ernesto Benavides/AFP)
- Oscar, a história recente de um país -

"Nem nos meus piores pesadelos imaginei que isso fosse acontecer comigo", diz Mónica, 45, quando lembra que teve de atestar com a sua assinatura que o corpo que seria cremado era do pai sem sequer ter visto o caixão.

Em abril, Oscar Farías, humilde, falante e "excelente churrasqueiro", sucumbiu em Buenos Aires no dia 27 de abril aos 81 anos. Mas não se trata apenas da morte, que é inevitável, ela reflete com seu irmão Ruy.

O que é "devastador" e "avassalador" nesta doença é a impossibilidade de acompanhar o ente querido no sofrimento e na transição para a morte.

Quando ele ainda estava consciente, seu pai ligou para ela do hospital e disse que estava com frio, mas ela nunca conseguiu chegar perto para aquecê-lo e levar um cobertor, diz ela.

Para Ruy, seu pai representou de alguma forma a história argentina do último meio século: metalúrgico, sua carreira viveu o boom industrial e "a derrocada do país" nas últimas décadas.

Ambos evocam sua habilidade de fazer coisas úteis "onde outros viram lixo": uma "gaita" feita de um pente e papel, ou um carrinho de brinquedo de um pedaço de madeira e tampas de garrafa de vinho.

O momento mais difícil: quando o médico assistente telefonou para avisar sobre o agravamento do quadro. "Naquele momento, a morte iminente se materializou", diz Mónica.

"Mas então papai teve um momento de clareza e me ligou. Quando eu disse a ele que, quando ele se recuperasse, íamos comer uma pizza e tomar um vinho, estávamos nos despedindo."

A médica começou a chorar quando ela respondeu não ao seu pedido de ir ao hospital para se despedir.

O carrinho segue exposto em sua biblioteca ao lado da foto de Oscar fazendo churrasco "e ouvindo tango no rádio", uma das mais vivas lembranças que lhe resta.


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