Jornal Estado de Minas

A vida dos palestinos atingidos nos olhos em protestos

Quando Jacqueline Shahada participou em uma manifestação a favor do retorno dos refugiados palestinos a suas terras, não imaginou que poderia perder a visão. E menos ainda que seria abandonada pelo marido e perderia a guarda dos filhos.

Em 9 novembro de 2018, como acontecia a cada sexta-feira há vários meses, milhares de palestinos se reuniram ao longo da barreira de segurança que separa a Faixa de Gaza e Israel, para mais uma manifestação da "Marcha do Retorno".



A situação se repete a cada sexta-feira: pneus queimados, pedras, granadas e bombas incendiárias lançadas em direção aos soldados israelenses do outro lado, que respondem com balas de borracha ou munição real.

Jacqueline, de 30 anos, com o véu apertado, pensava que as manifestações também eram destinadas às mulheres. E seguiu para as proximidades da barreira, para gritar "Palestina".

"Mas, de repente, senti algo que queimava meus olhos e perdi a consciência". Era uma bala de borracha.

Ela foi levada para o hospital, onde foi confirmado que havia perdido a visão do olho esquerdo.

Mas em um território governado pelo movimento Hamas, assolado pelo desemprego endêmico, Jacqueline não foi recebida com honras.

"Pensava que minha família e meu marido ficariam orgulhosos de mim, mas não. Paguei um preço elevado. Meu marido pediu o divórcio e perdi (a guarda dos) meus filhos", relata.

"Tudo isso me afetou realmente. Preferia ter sido morta, seria mais fácil", afirma Jacqueline, formada em Matemática.



- Mais de 8.000 feridos -

Nas últimas semanas, a AFP entrevistou mais de 10 palestinos que perderam um olho por disparos israelenses, durante ou à margem de manifestações em Gaza, Jerusalém e na Cisjordânia ocupada.

Alguns reconhecem que atiraram pedras contra as forças israelenses, outros afirmam que apenas participaram ou se aproximaram de um protesto. Às vezes longe dos confrontos.

Sobre a barreira de cimento que cerca Gaza, o exército israelense posiciona franco-atiradores de elite que, de acordo com as ordens, abrem fogo quando os manifestantes intensificam as pedradas.

Questionado sobre os ferimentos de Jacqueline e o uso ocasional de balas reais, o exército israelense cita um "desafio de segurança" e afirma que toma "todas as medidas possíveis para reduzir os ferimentos nos habitantes de Gaza que participam nos distúrbios violentos".

"Há fumaça, pneus em chamas, o gás e a multidão em movimento. Os franco-atiradores estão distantes, é difícil", destacou um comandante militar.

Mais de 8.000 palestinos foram feridos, por balas reais ou de borracha, em Gaza em quase dois anos de "Marcha do Retorno", de março de 2018 até o início de 2020.



Quase 80% dos ferimentos acontecem na parte inferior do corpo, de acordo com dados das autoridades palestinas, ONGs e organizações internacionais. Cerca de 3% dos feridos por balas são atingidos no pescoço ou na cabeça, como Jacqueline.

- "Matar o pai" -

Em Jerusalém, onde a situação é menos tensa, confrontos acontecem com frequência nos bairros de Shuafat e Essauiya, na zona leste da cidade, sob controle de Israel desde 1967.

Os moradores reclamam da crescente violência da polícia israelense, que alega responder ao aumento da violência nos bairros.

Aqui também usa balas ovais de borracha consideradas "menos letais", uma qualificação usada para descrever estas munições que ainda podem provocar a morte caso atinjam, por exemplo, a cabeça a uma distância curta.

Em fevereiro, Malik Issa, de nove anos, acabara de comprar um sanduíche em Essauiya quando foi atingido por uma destas balas.

A seu lado, Tala, a irmã mais velha, ligou imediatamente para os pais.

"Simplesmente disse 'Malik foi atingido na cabeça', mas eu pensei: 'Não, deve ter sido atingido no olho'. Fiquei paralisado por alguns minutos", conta o pai, Wael.

Malik agora tem um olho de vidro no lado esquerdo.

Meu filho é educado, inteligente, tem boas notas na escola, mas um soldado veio e atirou nele. Querem matar os pais atacando seus filhos", critica Wael, que trabalha em um restaurante em Tel Aviv.

A família ainda tenta compreender por quê um policial atirou em uma criança quando não havia uma manifestação nas proximidades.

Procurado pela AFP, o ministério israelense da Justiça afirmou que abriu uma "investigação interna" sobre o caso.