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Estado de Minas ENTREVISTA

'Vidas negras importam: há pouco clamor', diz professor da UFMG

Diante de fatos como a morte do negro George Floyd, nos EUA, e do garoto João Pedro, no Rio de Janeiro, especialista traça um perfil da segregação racial nos dois países


postado em 02/06/2020 04:00 / atualizado em 02/06/2020 10:57

Professor da UFMG compara o racismo existente nos Estados Unidos e Brasil(foto: Gabriela Maia/Divulgação)
Professor da UFMG compara o racismo existente nos Estados Unidos e Brasil (foto: Gabriela Maia/Divulgação)

“Há pouco clamor popular para reivindicar a humanidade dessas vidas”. A afirmação é do professor-adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG) Cristiano Rodrigues, que traça um paralelo entre os protestos nos Estados Unidos pela morte de George Floyd e os assassinatos de jovens negros no Brasil.

Autor do livro Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia (Appris Editora, 2020), nesta entrevista, Cristiano analisa o contexto racial dos Estados Unidos, país onde foi pesquisador visitante do Departamento de Sociologia e do Centro de Educação em Gênero e Sexualidade da San Francisco State University.

Coordenador da área temática de raça, etnicidade e política da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), Cristiano diz o que os protestos do movimento negro americano, que já duram uma semana, revelam sobre a luta pela igualdade racial naquele país. Também analisa o que representa o assassinato do menino João Pedro, de 14 anos, por policiais no Rio de Janeiro, para a discussão sobre o tema no Brasil. Nesta entrevista, o pesquisador traça as diferenças e semelhanças entre os movimentos negros dos dois países e como fazem o enfrentamento ao racismo.

O que o assassinato de George Floyd revela sobre os EUA e a questão racial?
O principal elemento para pensar é a relação, deste momento, com um período de otimismo, no governo Obama. Vários analistas chegaram a dizer que era o quê eles chamam de era “pós-racial”, em que a questão racial se tornaria menos relevante para as pessoas e para o cenário político norte-americano. Esse cenário político de relativo otimismo foi acompanhado, logo em seguida, por uma espécie de backlash da direita nacionalista, supremacista branca. Também tem uma relação com a eleição do Trump, em 2016.

A partir daí, começam a acontecer fenômenos que são importantes: menor atenção aos casos comuns e recorrentes de brutalidade policial, voltada para negros e minorias raciais nos Estados Unidos. No governo Obama, apesar de as políticas voltadas para essas questões não ter acontecido, você tinha um reconhecimento público de que o racismo era uma dimensão central nos Estados Unidos, que estes crimes tinham conotação racial e de que alguma coisa precisaria ser feita. Quando o Trump é eleito, você perde um pouco desse debate público sobre essa questão. E ela, muitas vezes, é trabalhada numa simetria entre dois grupos em disputa, em que ambos são igualmente errados, igualmente bons. Um desses exemplos seriam os protestos, em 2017, em Charlottesville de supremacistas brancos.

Logo depois, fez-se acompanhar de um contraprotesto. Foi uma grande confusão. Trump foi a público e disse: ‘há pessoas boas em ambos os lados’. Não tomou uma posição enérgica em relação a isso. Do ponto de vista da política institucional, da liderança do país, você tem uma passagem do otimismo da era ‘pós-racial’ para uma certa negligência e, eu diria, de certo confronto com a ideia de otimismo, que é de negar a importância do racismo e tentar deslegitimar ações dessa natureza.

Podemos traçar um paralelo sobre o que acontece lá com o momento que passamos no Brasil?
Poderia dizer que há uma percepção, em ambos os países, de que os casos de racismo não recebem o devido reconhecimento popular, o devido reconhecimento das autoridades políticas do país. O outro é: em ambos os países, tivemos uma passagem de momento de certo otimismo na sociedade, de certa esperança em mudança, para um desencanto. Esse desencanto refletiu tanto na eleição do Trump como na eleição do Bolsonaro.

Desencanto com o sistema de representação política, mas é também uma espécie de revanchismo. São dois presidentes que foram eleitos por uma espécie de revanchismo branco, por assim dizer, de pessoas que não queriam dividir o espaço democrático com outros grupos que antigamente estavam fora desse sistema. Junta-se a isso o fato de que, no Brasil, alguns autores chamam de “genocídio da juventude negra”, nos Estados Unidos é a questão da brutalidade policial. São casos muito recorrentes, muito comuns e com alto grau de impunidade.

Além disso, estamos em momento de pandemia em que as pessoas estão mais desencantadas, mais desesperançosas e pessimistas em relação ao mundo. Isso vira um grande caldo de cultura, em que a insatisfação popular com a política, a insatisfação popular com a situação da pandemia e a percepção de que as questões do racismo não são devidamente tratadas na esfera pública crescem, de tal forma, que fazem com que esses protestos ganhem proporções gigantescas.

Quais as semelhanças e principais diferenças entre os movimentos negros no Brasil e nos EUA?
Os movimentos negros no Brasil e nos Estados Unidos são muito diferentes. Em primeiro lugar, porque respondem a sistemas de opressão racial muito diferente. Nos Estados Unidos, a população negra é da ordem de 15%, e quando houve a Guerra da Secessão, que tem muito a ver com o fim do sistema de escravidão, logo depois no Sul dos Estados Unidos, foram criadas as Leis de Jim Crow, que promoveram várias formas de segregação – espacial, no transporte público, nas escolas.

Uma forma muito grande de organização da sociedade, em que os negros tinham acessos limitados: a questão dos iguais, mas separados. Há um peso muito grande nas comunidades norte-americanas da religião. As igrejas negras no Sul dos Estados Unidos acabaram sendo um espaço de concentração e espaço de desenvolvimento da consciência política muito importante para a população negra naqueles períodos. Logo depois, você tem, durante os anos 1960, os movimentos de desobediência civil liderados por Martin Luther King, os boicotes de dois e três anos, e tudo isso gera uma ação do movimento muito voltada para a prática comunitária e o entendimento de que as pessoas negras são oprimidas enquanto coletivos.

Mesmo nos EUA, no período da segregação, havia classe média negra, universidades negras, você tinha sistema social negro diferente dos brancos, mas que, apesar de as pessoas acenderem na classe social, ainda assim sofriam com racismo quando iam para fora de suas comunidades. Percepção de que o fato de elas serem negras era o que limitava a participação como membros integrais da sociedade. A partir dos anos 1960, surgem os movimentos pelos direitos civis, a entrada de mais negros na universidade, criação de classe média, econômica e política negra. Mesmo com essa ascensão econômica e política de uma parte da população negra, os casos de racismo continuam acontecendo frequentemente.

Caso muito discutido, atualmente, é o direito à moradia em Chicago. Há empreiteiras e agiotas que cobravam mais caro de pessoas negras para comprarem casas do que de pessoas brancas. Por essa razão, atualmente, se discute muito como o sistema de financiamento habitacional dos EUA foi corrompido para impedir que negros tivessem acesso a empréstimos bancários subsidiados pelo governo.

No caso do Brasil...
A partir do fim da escravidão, nós não tivemos sistema legal de segregação semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos. Esse sistema legal de segregação lá, de certa forma, permitiu que os negros avançassem do ponto de vista da consciência racial de maneira distinta da brasileira. Era perceptível que os limites de acesso político, econômico e social dos negros nos EUA eram em decorrência da cor da pele.

Daí o fortalecimento da comunidade negra era central para garantir que aquelas pessoas tivessem acesso e também fizessem a luta dentro sistema político-jurídico para reversão de leis segregacionistas. Daí a ‘Brown versus Board of Education’, que é uma decisão da Suprema Corte Americana em 1954, que vai propor a dessegregação das escolas. Mas há revanche dos brancos, e essa dessegregação não acontece. As escolas públicas são mais segregadas do que eram no período anterior a essa decisão judicial. Quando os negros avançam nos EUA, os brancos se retiram daqueles espaços sociais. No Brasil tem movimento duplo, de duas naturezas por assim dizer. Não tem leis oficiais de segregação e discriminação social, mas você tem discriminação e segregação racial de fato.

Uma junção do padrão econômico e cor da pele. Se você vai em determinados bairros da cidade, eles são mais negros do que outros, as escolas são mais negras do que outras. Os acessos são diferenciados. Uma grande miscigenação meio que não permite que nós saibamos quem são aqueles afetados. O nosso caldo de cultura, a nossa história, é diferente dos EUA. Se nos EUA tinha a percepção que a cor da pele era limitador para o acesso, no caso do Brasil, por muito tempo, ficamos na discussão se era classe ou cor da pele. É mais difícil identificar quem são as pessoas negras no Brasil.

O movimento negro passou por momento de tentar conscientizar as pessoas que elas são negras e é por isso a falta de acesso que elas tem. Foi necessária a construção de consciência. Essa consciência, a meu ver, só nos últimos anos, começou a ficar mais difundida em todas as classes sociais. Antes, me parece, as pessoas negras das classes médias eram aquelas que percebiam mais facilmente o racismo, porque eram elas que disputavam o acesso com as pessoas brancas, disputavam o mercado de trabalho, iam nos mesmos espaços de lazer, iam para os mesmos lugares de cultura. Os negros mais pobres dividiam espaço com pessoas mais pobres e muitas das experiências de racismo delas se passam por experiência de preconceito de classe.

Quando houve maior democratização do acesso ao ensino superior, a partir dos anos 2000, grande luta do movimento negro no Brasil nas últimas décadas, passamos a ter maior participação de classes diferentes em espaços considerados brancos. Houve maior disputa por acesso e por direitos. No nosso caso, a construção da consciência racial é mais ao fim do debate, enquanto nos Estados Unidos ela é mais no início do debate. Ambos são países que exercem formas de segregação implícita e explícita que são muito rígidas.

O que o assassinato de João Pedro, um menino de 14 anos, no Rio de Janeiro, revela sobre a questão racial no Brasil?
O assassinato do João Pedro não foi o único. Se fossemos enumerar os assassinatos de jovens negros no Brasil, ficaríamos horas falando os nomes. Tivemos Ágatha alguns meses atrás. Esses fatos revelam que nossa indignação ao assassinato de jovens negros não é, nem de longe, tão grande como estamos vendo esse caso dos EUA. Isso revela muito sobre o Brasil, porque como diz uma frase de Florestan Fernandes, sociólogo muito importante dos estudos da questão racial no Brasil: ‘o brasileiro tem preconceito de ter preconceito’. O que ele queria dizer com isso? A gente faz um acordo tácito.

Tanto aquele que é a pessoa que age preconceituosamente tanto a que sofre o preconceito fazem acordo tácito de não falar sobre aquilo. É vergonhoso para o indivíduo que é preconceituoso e também é vergonhoso para aquele que passa pelo preconceito, fica parecendo que ele está sendo vitimado. No Brasil, temos problema com esse debate. Por trás da nossa baixa indignação com a morte da Ágatha e do João Pedro e tantos outros jovens negros, vem a culpabilização da pobreza, criminalização da pobreza. Toda vez que um indivíduo pobre e negro é vítima de uma ação violenta policial, a gente se pergunta: ‘o que ele fez de errado?' Em vez de dizer que aquela ação policial é indevida, fere direitos humanos fundamentais, de antemão a gente diz ‘o que aquele sujeito fez de errado.’

Depois a gente tenta negar, por mais que demonstre que a recorrência daqueles casos indica o racismo estrutural. Seguindo o que Florestan disse: as pessoas não querem ver a sociedade brasileira como racista. Elas não querem se ver enquanto pessoas que perpetuam o racismo, elas não querem ver o racismo como a causa dessas mortes. E elas se calam diante disso. É uma forma de transformar os indivíduos que são mais vulneráveis socialmente em inimigos do país. Há pouco clamor popular para reivindicar a humanidade dessas vidas. Isso revela muito sobre o racismo no Brasil, colocar embaixo do tapete as experiências de racismo

Há diferença entre o racismo no Brasil e nos Estados Unidos?
O racismo à brasileira é velado. Desde o fim da escravidão, raramente tivemos legislações que eram explicitamente racistas, mas ele ocorre, as atitudes são racistas e podem ser confundidas como não-racistas. Em um desses exemplos, uma boate em Belo Horizonte impediu uma moça de entrar. Ela tinha chamado alguns amigos para comemorar o aniversário. Os amigos entraram e ela foi impedida de entrar.

Quando foi impedida, em nenhum momento disseram que era porque ela era negra. Você não tem boa aparência, você não pertence a este lugar. O modo que o Brasil se expressa, velado, cria barreiras para que os negros percebam que o limitador social, político e economicamente é a cor da pele. Nos Estados Unidos começou diferente. Começou com legislação explicitamente racistas e a segregação dos negros em guetos, espaços exclusivamente negros, fez com que a consciência racial fosse imediata.

As limitações políticas, econômicas e sociais eram decorrentes da cor da pele. Começam a criar legislações que são indiretamente racistas, que continuam afetando as liberdades sociais, políticas e econômicas das pessoas negras. Um exemplo é como o Sistema de Justiça Criminal é composto por leis que aumentam desproporcionalmente o encarceramento de negros.



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