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Estado de Minas

A gripe de 68, uma letal e discreta pandemia


postado em 05/05/2020 12:01

Um vírus respiratório surge na China, atravessa fronteiras, se torna uma pandemia e provoca milhares de mortes em países como Estados Unidos e França. O coronavírus de 2020? Não, a gripe de Hong Kong do final dos anos 1960.

Essa epidemia de gripe H3N2, detectada em meados de 1968 em Hong Kong, percorreu o mundo em um ano e meio, matando um milhão de pessoas.

"As pessoas chegavam de maca, em estado catastrófico. Morriam de hemorragia pulmonar, com cianose nos lábios, completamente cinzas. Havia pessoas de todas as idades, 20, 30, 40 anos ou mais", lembrava em 2005 no jornal francês Libération o infectologista Pierre Dellamonica.

Os corpos se amontoavam nos "hospitais e necrotérios" durante o pico da epidemia na França em dezembro de 1969, explicou à AFP o historiador especialista em questões de saúde Patrice Bourdelais.

Na época, porém, a pandemia não ocupou as manchetes, o governo não tomou nenhuma ação e nem houve alerta de saúde. "A calma superou uma possível mobilização", diz Bourdelais.

Como explicar essa placidez? Naquela época, o ambiente médico, os líderes, a mídia e a população em geral tinham fé quase cega no progresso e em suas novas armas, como vacinas e antibióticos milagrosos, que haviam funcionado, por exemplo, com a tuberculose, de acordo com o especialista.

Além disso, a sensibilidade à morte não era a mesma de hoje: "As 31.000 vítimas da gripe de Hong Kong (na França) não criaram nenhum escândalo, passaram despercebidas por várias décadas", comenta o historiador.

Tivemos que esperar 2003 e o trabalho do epidemiologista Antoine Flahault para conhecer esse número.

- "Doença do Antropoceno" -

Era também a época dos "30 gloriosos", do boom econômico após a Segunda Guerra Mundial. "Nesta curva de progresso multidimensional", um acidente como uma gripe mortal não era tão intolerável como hoje.

As tensões internacionais com guerras em andamento como a do Vietnã e a crise humanitária decorrente do conflito de Biafra na África tornaram possível relativizar a miséria causada por uma epidemia mais mortal que as outras.

Tudo o contrário de hoje: a epidemia da COVID-19 exterminou qualquer outra coisa da esfera pública e levou a uma paralisia gigantesca.

Talvez porque a saúde tenha se tornado a principal preocupação individual e porque a sociedade estivesse inconscientemente convencida de que possuía todas as armas para combater epidemias, de acordo com Bourdelais.

Para o geógrafo Michel Lussault, a enorme importância dada à pandemia da COVID-19 reflete simplesmente "a escala das grandes mudanças da globalização", com extrema mobilidade internacional de bens, pessoas e informações.

O infectologista Philippe Sansonetti ilustra a propagação internacional do coronavírus no hemisfério norte, mostrando um mapa de voos internacionais da China para a Europa e América do Norte: a propagação do vírus corresponde perfeitamente à densidade das conexões aéreas.

"Essas doenças infecciosas emergentes são doenças do antropoceno", época em que a incidência da atividade humana na Terra se torna predominante e "estão relacionadas exclusivamente à apropriação do planeta pelo homem", explica Sansonetti, professor de "Microbiologia e Doenças Infecciosas" no College de France.

A pandemia da COVID-19 conta uma história em três episódios: um "salto de espécie", com a passagem do coronavírus de um animal para o homem, um "transbordamento", com a disseminação do vírus entre humanos, e um "terceiro estágio que precisa ser relacionado à explosão do vírus devido à ação do homem no planeta, através do transporte intercontinental", afirma.

Em 1968 e 1969, levou vários meses para o vírus influenza A (H3N2) passar da Ásia para os Estados Unidos e Europa. Desta vez, algumas semanas foram suficientes.


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