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Estado de Minas

O luxo de morrer em uma Argentina em crise


postado em 30/12/2019 16:55

Ninguém escapa dos efeitos da crise econômica que abala a Argentina, a pior em quase duas décadas, nem mesmo os mortos. Em um país onde a pobreza atinge quase 40% da população, as decisões sobre a última morada não fogem dos ajustes a que é submetida a economia familiar.

"O problema é econômico. As pessoas não têm dinheiro para contratar um serviço, os parentes se ajudam entre si, pedem emprestado, tem quem venha e pague com os dólares economizados ou guardados debaixo do colchão", diz à AFP Juan Tapia, um dos donos da funerária Cochería Tacuarí, localizada a 10 minutos do Obelisco, no centro da capital argentina.

Segundo Tapia, "os serviços são cada vez mais baratos porque as pessoas infelizmente não têm o poder aquisitivo de anos atrás. (Pagar por algum) significa, para uma família, que talvez não coma aquele mês".

A opção mais em conta oferecida por esta funerária fundada há 60 anos é a cremação sem velório, ao preço de 25.000 pesos (pouco mais de 1.670 reais). Do hospital, o corpo segue direto para o cemitério, em um caixão simples de madeira de choupo-branco. A partir daí, dependendo da qualidade do esquife, entre outros detalhes, o valor pode chegar a 180.000 pesos (mais de 12 mil reais).

O serviço "direto" é o mais solicitado pelos clientes. "Quase 90% pedem cremação. Os jovens não querem saber de nada, nem de terra, nem de nicho", afirma Tapia.

Suas estimativas se aproximam das estatísticas oficiais. Em 2018, do total dos falecimentos na cidade de Buenos Aires, 78,5% foram para a cremação, segundo um cálculo feito pela AFP com base em registros públicos. É a maior proporção da última década.

"Para alugar um nicho no cemitério é preciso pagar um valor anual e muitos não querem ou não podem fazê-lo, então optam pela cremação", explica o especialista.

Em caso de sepultamento ou alojamento do caixão em nichos, os cemitérios públicos de Buenos Aires cobram taxas anuais e serviços de manutenção que variam de 400 a 2.000 pesos mensais (de 27 a 140 reais, aproximadamente). Nos particulares, as parcelas são vendidas a partir de 55.000 pesos (cerca de 4 mil reais) e o custo de manutenção mensal é de, no mínimo, 500 pesos (uns 34 reais).

A cremação, ao contrário, permite aos familiares espalhar as cinzas do ente querido em um local especial ou mantê-las em uma urna dentro de casa, duas opções que não trazem despesas fixas a longo prazo.

- Vende-se nicho -

Há três meses, Patricia Álvarez, tradutora de inglês e maquiadora, publicou anúncios na internet para vender um nicho que sua família tinha comprado no cemitério público da Chacarita, em Buenos Aires.

"Estou vendendo porque não faz mais sentido", explica à AFP, a única a responder ao seu anúncio. "A despesa não é tão alta, são 500 pesos por mês, mas quando se acumula atrapalha e se soma a outro montão de despesas que tenho ultimamente", confessa.

O nicho dos Álvarez se encontra em bom estado, mas outros parecem acumular dívidas, com cartazes que pedem aos proprietários para "procurar a administração".

Em outros locais do cemitério, veem-se muitos túmulos abandonados, com vegetação crescendo sem controle e estatuetas quebradas, assim como dezenas de nichos destruídos, inclusive com restos de ossos aparentes.

De pé, ao lado do túmulo de sua mãe, com luvas e tesouras de poda na mão, Maria prefere não dizer seu sobrenome por medo de represálias do pessoal da manutenção.

"Não penso em pagar mais (ao cuidador) - 1.500 pesos (pouco mais de 100 reais) por mês para cortar o mato é muito! Por esse dinheiro, melhor eu vir e fazer eu mesma", diz à AFP.

- Mudança de paradigma -

Para Jorge Bonacorsi, presidente da Federação Argentina de Entidades de Serviços Fúnebres e Afins (FADEDSFYA), a falta de interesse das famílias em visitar os cemitérios e o auge da cremação se explicam por uma mudança cultural e são uma tendência mundial, que a Argentina vê sobretudo na capital.

"A tendência agora é uma certa praticidade sentimental, as pessoas querem acabar com o problema", explica Bonacorsi.

Daniel Ferreyra, gerente de operações dos cemitérios privados Grupo Jardín del Pilar, na periferia norte da capital, adverte que para além da conveniência econômica, "o serviço direto do hospital ao cemitério tem um efeito psicológico muito forte, pois não permite que as pessoas vivam o luto".


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