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Estado de Minas

Mali, um país marcado pelo desespero, pobreza e violência do jihadismo


postado em 06/11/2019 11:01

Imperturbável, o poderoso rio Níger atravessa a cidade do Sahel, enquanto as mulheres lavam roupas em suas águas salobras e as vacas dormem nas proximidades em meio ao calor.

Mas essa imagem pacífica é uma ilusão, pois Mopti, uma cidade de 150.000 habitantes, está em uma espiral obscura e descendente.

Não faz muitos anos, visitantes estrangeiros abastados visitavam a chamada Veneza do Mali.

Eles passavam alguns dias lá e depois iam para os penhascos de Dogon para se apreciar a lendária comunidade de cavernas ou visitar as curiosas mesquitas de paredes de barro do século XIX.

Mas esse fluxo de turistas, juntamente com sua preciosa moeda, secou.

O conflito jihadista que eclodiu no norte do Mali em 2012 chegou ao centro do país, provocando uma crise de ressentimentos étnicos e alimentando medos em relação ao futuro desta frágil nação.

Hoje, Mopti se vê cercada por um mar de conflitos e criminalidade que deixou milhares de mortos.

Segundo dados da ONU, cerca de 70.000 pessoas na região fugiram de suas casas.

A capital regional, outrora tranquila, é assombrada por moradores deslocados que buscam refúgio dos conflitos.

Agentes de turismo desempregados sobrevivem fazendo trabalhos braçais. E outros têm seus próprios motivos bem fundamentados para almejar o anonimato da cidade.

- Segredo do pastor -

Uma dessas pessoas é Ibrahim, 45 anos, que empurra um carrinho de duas rodas pelas ruas, com o rosto quase escondido pelo turbante. Sua figura se perde na multidão de vendedores ambulantes.

Ibrahim - esse não é seu nome verdadeiro - tem um passado secreto. Até sua esposa não tem conhecimento disso.

Por quatro anos, ela acreditou que ele havia ido ao exterior trabalhar "por aventura", como os pobres africanos ocidentais tendem a definir sua atração pela migração.

Na verdade, ele se uniu à Jihad.

O humilde pastor tornou-se atirador do Katiba Macina, um grupo islamita implacável fundado pelo pregador radical de Mopti, Amadou Koufa.

Koufa é um Fulani, um grupo étnico também conhecido como Peuls, e que está espalhado pelo Sahel com tem profundas tradições de pastoreio nômade.

Um dia, os jihadistas se aproximaram de Ibrahim, que é da etnia Songhai, enquanto ele estava pastoreando suas ovelhas perto do acampamento da família.

"Combata e faça cumprir a lei da sharia divina, e você será bem pago", foi a promessa feita a ele.

Lutando para alimentar seus seis filhos com sua renda quase inexistente, Ibrahim aceitou a oferta.

"Eu era tão pobre que não podia recusar", admite, timidamente.

Os jihadistas pagavam 300.000 francos CFA (US$ 507) por mês - 20 vezes a mais o que ele ganhava antes.

Mas a fortuna veio com um preço: sua tarefa era matar.

Durante os quatro anos seguintes, ele atacou vilarejos e matou "montes de pessoas", em suas próprias palavras.

- Olhos dos jihadistas -

Há três anos, Ibrahim desertou. Mas ele não pode voltar para casa por medo de represálias de seus ex-companheiros de armas.

Ele mudou seu nome e vive anonimamente. Ganha alguns francos entregando mercadorias com seu carrinho de mão, mas todos os dias amanhece com medo.

Os tentáculos jihadistas têm a reputação de estar em todo lugar.

Dizem que na cidade seus olhos estão por toda parte, graças a uma rede de informantes.

E eles também têm uma atividade lucrativa através de ataques ao tráfego fluvial, saqueando barcos e roubando viajantes.

A apenas 13 km de distância, em Sevare, fica a base da missão de manutenção da paz da ONU no Mali.

Suas tropas, cujo número aumentou no final de junho depois que a violência tomou conta da região, estão escondidas entre as fortificações de arame farpado.

Todos se recordam de um ataque ousado em junho de 2018 contra a sede em Sevare por parte da chamada força antijihadista do G5, que resultou na morte de três pessoas.

Desde então, a maior parte da força formada por cinco nações se mudou para a capital do Mali, Bamaco, a 650 km de distância.

- Corrida das armas -

O centro de Mali viveu uma transformação desastrosa, passando de mosaico étnico a zona de conflito, o pode ser percebido nos eventos ao longo de 2012.

Em março daquele ano, um golpe em Bamaco derrubou o governo e o exército entrou em colapso.

No vácuo da segurança, surgiu um grupo militante tuaregue, o MNLA, e um aliado jihadista, Ansar Dine, que invadiu o norte do Mali e chegou até o centro do país.

Outra organização, o Movimento pela Unidade e Jihad na África Ocidental (MUJAO), surgiu na cidade de Gao, no norte, e aldeias foram ocupadas na região de Mopti. As armas inundaram a região do norte e, no interior, os habitantes aterrorizados começaram a organizar a proteção de suas comunidades.

A suspeita começou cair sobre os Fulani - supostos "terroristas" que sofreram uma onda de prisões arbitrárias e assassinatos extrajudiciais.

Os Fulani pediram ajuda a Bamaco para reforçar suas defesas. Nada foi feito, reforçando a sensação de abandono dessa etnia.

"O governo de transição se recusou a fornecer armas, temendo que fossem usadas contra eles um dia", afirma Boukary Sangare, pesquisador do Instituto de Estudos de Segurança, uma organização sul-africana.

"No fim das contas, dezenas de pessoas se juntaram a grupos armados que ofereciam proteção".

- Ressentimento -

O ressentimento tomou conta dos Fulani e os jihadistas exploraram isso com habilidade.

No centro rural do Mali, uma região com o menor nível de escolaridade do país, a revolta explodiu contra um governo e uma elite que desprezavam os nômades Fulani e os viam como um povo "sem terra", sem outros vínculos a não ser com seus animais.

"Os Fulani ficaram com raiva", explica Sangare. "Durante muito tempo, eles se queixavam de excesso de tributação da área de pastagem, de multas exorbitantes das autoridades florestais por causa de pequenas queimadas, ou da invasão e roubo de gado por bandidos que assolavam a região".

Em 2013, a intervenção militar francesa reverteu a insurgência no norte, embora os rebeldes tenham sido essencialmente dispersos e não eliminados.

As forças de segurança do Mali retornaram à região central e realizaram uma onda de repressão contra suspeitos de "terrorismo".

E, em Bamaco, as mídias se tornaram cada vez mais anti-Fulani, aumentando o preconceito contra a comunidade.

"Nossos jovens tiveram a impressão de que todo o Mali estava contra eles", comenta Abdoul Aziz Diallo, chefe da principal associação Fulani do país, a Tabital Pulaaku.

- Semideus-

Alguns pastores se juntaram a pequenos grupos de autodefesa ou ladrões de gado, enquanto muitos optaram por engrossar as fileiras do grupo Katiba Macina.

Um deles foi Ibrahim, que se deslocou até Gao para passar por um treinamento militar.

Os camponeses tinham muitas razões para se juntar aos jihadistas, do desejo de dinheiro à proteção de suas famílias e da fé. E se havia muitos jovens Fulanis entre os combatentes, também havia membros de outros grupos - Songhais, como Ibrahim, Tuaregs, Bellas e Bambaras.

Todos olhavam o líder Amadou Koufa com adoração.

"Koufa era um semideus. Meus camaradas ouviam seus discursos o tempo todo em seus telefones celulares - cada palavra que ele dizia, eles interpretavam literalmente", lembrou Ibrahim.

Koufa começou sua pregação nos anos 90, desenvolvendo seguidores entre estudantes e pastores muçulmanos por seus ataques ardentes às elites locais.

Em mesquitas e escolas corânicas, discursava sobre os fiéis na língua fulani, procurando imitar Sekou Amadou, um lendário Fulani que fundou um império no século XIX e que se estendia de Segou a Timbuctu.

Seus sermões, inicialmente de caráter universal, tornaram-se mais radicais e cada vez mais direcionados ao público Fulani.

Ele atacou os proprietários de terras que cobravam impostos dos pastores que cruzavam suas terras, dizendo que o "bourgou" - uma planta que cresce nas margens do Níger e é usada para alimentar gado - "pertence a Deus, assim como a chuva que o fez crescer."

E ele procurou inflamar a diáspora Fulani na África Ocidental.

"Meus irmãos, onde quer que vocês estejam, venham apoiar sua religião", proclamou em um vídeo divulgado em novembro de 2018, acusando os "descrentes de massacrar e exterminar os Fulani".

- Banho de sangue-

Armado com uma metralhadora, Ibrahim se juntou a um comando encarregado de realizar "missões de punição" na região de Douentza.

"Se uma vila se recusasse a ceder, se estivesse colaborando com as autoridades, recebíamos ordens para matar pessoas e incendiar suas casas", lembrou.

Um dia, seu líder, um homem chamado Diallo, o chamou. As ordens foram alteradas. A partir de agora, Ibrahim tinha que punir os infiéis cortando suas gargantas.

Ibrahim disse que fez o que foi ordenado, sob o feito de fortes doses do analgésico a base opioide, distribuído pelos jihadistas a seus combatentes.

"Eles nos enchiam de drogas dia e noite. Eu não era mais eu mesmo", contou Ibrahim.

Quantas pessoas matou? "Cerca de vinte", admitiu, com voz trêmula.

"Eu cortei a garganta deles como se fossem ovelhas", completou.

Mas ele se sentia enojado com o que estava fazendo e as recordações de seus atos o assombram até hoje.

"Durante muito tempo, não avaliei a seriedade de meus atos. Deveríamos estar colocando as pessoas no caminho certo, mas aquilo era demais. Foi quando decidi desertar".

- A volta dos jihadistas -

Em 2015, os jihadistas voltaram a lançar uma série de ataques espetaculares, atacando ousadamente um acampamento do exército em Nampala e matando 12 soldados e ferindo outros 34.

O domínio extremista da região aumentou, ajudado por uma estratégia clássica de guerrilha. As aldeias suspeitas de colaborar com o exército eram literalmente sitiadas.

Ninguém pode entrar ou sair sem medo de ser baleado ou sequestrado.

Cerca de 160 Fulani morreram em março em Ogossagou, perto da fronteira com Burkina Faso, em um massacre realizado por uma milícia Dogon.

Em junho, cerca de 75 dogons foram mortos em Sobane Da, Gangafani e Yoro.

Os acordos para o fim das hostilidades nas regiões de Mopti e Segou foram assinados no início de agosto por uma dúzia de grupos armados, mas a perspectivas de que sejam respeitados são escassas.

"A cada novo ataque, a cada vila queimada, o ressentimento e a pobreza ganham terreno, e os sobreviventes se juntam aos grupos armados", explica um diplomata estrangeiro em Bamaco.

- Vida dura -

Os jihadistas que assumem o controle das aldeias impõem sua própria interpretação puritana da lei islâmica.

As mulheres devem ser cobertas da cabeça aos pés e fumar, beber álcool e até ouvir música são proibidos para todos.

Nessas áreas, muitas pessoas consideradas símbolos do Estado - autoridades administrativas, magistrados, professores - fugiram para as cidades em busca de segurança.

No entanto, os jihadistas impuseram ordem na disputa entre os camponeses.

"Se houver uma briga por gado ou uma disputa familiar, eles decidem rapidamente. Se você está errado, paga sua multa. Não há possibilidade de apelo e corrupção", afirma uma autoridade local que agora vive em Bamaco.

"É por isso que as pessoas gostam deles. A justiça é vital para um pobre", comenta Boukary Sangare.

"Os jihadistas nem sempre são tão impopulares quanto as pessoas podem acreditar".

Aqueles os são presos ou sequestrados pelos extremistas podem esperar pouca misericórdia.

Makan Doumbia, 62 anos, prefeito na região de Tenenkou, foi sequestrado em 2018 depois de se recusar por anos a ceder ou colaborar com os jihadistas.

Ficou preso por nove meses e sofreu com o calor escaldante, tempestades de areia e chuva forte enquanto os jihadistas o usavam como moeda de troca para libertar camaradas encarcerados.

"Os sequestradores dizem que os funcionários do governo são seus prisioneiros de guerra", conclui Doumbia.


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