Quando o soldado de elite norte-coreano Joo Seung-hyeon arriscou a vida atravessando um campo minado para se refugiar na Coreia do Sul sonhava com um futuro próspero. A realidade se mostrou outra: assim como acontece com muitos de seus conterrâneos, ele sofre discriminação e desprezo na Coreia do Sul.
Excluído pelos sul-coreanos, que consideram os vizinhos do norte como "bárbaros toscos", Joo teve muitas dificuldades para conseguir um emprego, em grande parte devido a seu forte sotaque norte-coreano.
Em seu périplo, o ex-soldado, agora com 37 anos, trabalhou em um restaurante onde ganhava metade do que recebiam seus companheiros sul-coreanos.
Joo Seung-hyeon resistiu a tudo e praticou, ouvindo o rádio, para se livrar das inflexões norte-coreanas e imitar o sotaque do sul.
Em seu tempo livre, estudou para ter um título universitário e acabou completando um doutorado em Estudos sobre a Unificação, tornando-se o primeiro norte-coreano a conquistar esse grau acadêmico.
Acaba de publicar um livro sobre os desafios que os desertores norte-coreanos enfrentam em uma sociedade que é radicalmente diferente.
Desde o fim da Guerra da Coreia (1950-53), mais de 30.000 norte-coreanos fugiram da pobreza e da repressão empreendendo a difícil e perigosa viagem para o Sul.
Nos anos 1970 e 1980, eram recebidos com grande pompa na Coreia do Sul, onde a unificação figura como um objetivo na Constituição. Alguns eram tratados como "heróis".
Quando as deserções a conta gotas se transformaram em uma enxurrada de refugiados na década de 1990, por conta da fome que deixava milhares de mortos na Coreia do Norte, a opinião dos sul-coreanos mudou, porém.
Hoje, muitos refugiados se queixam da dificuldade de encontrar trabalho, ou de fazer amigos. Seus conhecimentos e suas competências são considerados obsoletos, ou irrelevantes, e uma parte dos sul-coreanos os olha com suspeita e até desprezo.
Alguns chegam a considerá-los "intocáveis".
A taxa de desemprego entre os desertores norte-coreanos é de 7%, quase o dobro da média nacional, e sua renda mensal é a metade da média do país.
- 'Estigma' -
Segundo um estudo, cerca de 20% dos norte-coreanos são vítimas de fraudes, roubos e de outros crimes, corroendo a ajuda de 19.000 dólares que o governo lhes dá para facilitar sua instalação.
Joo desertou em 2002, atraído pelas sirenes da "liberdade e da prosperidade" anunciadas pelos alto-falantes que o Exército sul-coreano coloca ao longo da fronteira.
Ele decidiu, então, abandonar seu posto como soldado e passou pelo arame farpado, cruzou um campo minado e, em meia hora, atravessou a Zona Desmilitarizada que divide a península. É exatamente ali que acontece, nesta sexta-feira, uma cúpula intercoreana nada habitual.
Já no Sul Joo teve de enfrentar uma pressão que desconhecia.
"De cara caí neste mundo ultracompetitivo, onde prevalece o princípio da sobrevivência do mais forte", afirmou.
"Essa realidade era, para mim, mais fria do que a noite de inverno, em que cruzei a fronteira sozinho", desabafou.
"Me dei conta de que, talvez, nunca vá ser capaz de me livrar do estigma de 'desertor norte-coreano'", lamentou.
- Um futuro sombrio -
Apesar de ter um título, recebeu centenas de "nãos" ao se identificar como desertor quando se candidatava a um emprego. Quando ocultava sua origem, conseguia ser entrevistado e até contratado.
Hoje, trabalha como professor universitário. "Um caso muito raro", diz ele, que aponta o fator "sorte".
Seu livro está cheio de histórias de partir o coração, como a de um desertor que se suicidou diante da impossibilidade de conseguir um trabalho, apesar de ter obtido com grande esforço um título universitário.
Outro refugiado decidiu deixar a Coreia do Sul, quando soube que pais de crianças sul-coreanas se negavam a ter seus filhos frequentando a mesma escola que o dele.
Joo é um dos nove soldados que cruzaram a fronteira terrestre de 2000, o último deles em novembro, sob uma épica chuva de tiros que foi capa de vários jornais.
Atualmente, desse grupo, dois estão presos por consumo de drogas e tentativa de assassinato, outro se tornou alcoólatra e faleceu de câncer de fígado, um quarto ficou paralítico após ser atropelado por um carro e outro vive fora do país.
"Muitos soldados dizem que lamentam terem vindo para o Sul", disse Joo à AFP.
Ele não se arrepende e cita os casos de jovens que conseguem se integrar.
- Voltar para o Norte -
Um estudo do governo mostrou que 23% dos norte-coreanos que vivem na Coreia do Sul havia pensado em voltar para o Norte, devido à nostalgia.
Alguns realmente conseguiram.
Nessa guerra de versões, Seul acusa Pyongyang de ter sequestrado alguns deles, cujas aparições são grotescamente coreografadas, enquanto se desconhece o destino final dessas pessoas.
As organizações de defesa dos direitos humanos afirmam que os desertores são duramente castigados no Norte.
"Nunca considerei a vida no Sul como um inferno, mas me parte o coração ver aqueles que arriscaram sua vida para vir se suicidarem, ou emigrarem para outros países, devido à discriminação e ao estigma", reconheceu Joo.
Esse tema mostra um panorama complexo para uma eventual reunificação.
"Os norte-coreanos são pessoas muito orgulhosas e nunca vão tolerar que se despreze seu orgulho nacional e pessoal", afirmou.
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