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Estado de Minas

Jornalista mineira descreve clima de Paris após ataque

Em relato exclusivo ao EM, Márcia Bechara diz que o atentado feriu os mais sagrados valores franceses


postado em 08/01/2015 08:28 / atualizado em 08/01/2015 13:39

Vigílias foram convocadas por toda a França para homenagear às vítimas do atentado ocorrido na sede jornal satírico Charlie Hebdo, que vitimou 12 pessoas (foto: AFP PHOTO/JEFF PACHOUD)
Vigílias foram convocadas por toda a França para homenagear às vítimas do atentado ocorrido na sede jornal satírico Charlie Hebdo, que vitimou 12 pessoas (foto: AFP PHOTO/JEFF PACHOUD)

Paris – Este 7 de janeiro de 2015 dava sinais de uma tristeza cinzenta desde suas primeiras horas. Como toda primeira quarta-feira do mês, em Paris, escutamos as sirenes antiaéreas da época da Segunda Grande Guerra por toda a cidade, por volta de 11h, uma herança (mórbida, talvez, mas de uma eficiência memorial enorme) da época da ocupação nazista. As sirenes ressoaram com seus apitos agudos e prolongados. Respiramos aliviados, afinal, não estamos mais sob ataques aéreos.

Meia hora depois, entrincheirados em sua própria redação de jornal, o excelente Charlie Hebdo – uma verdadeira instituição francesa que celebra o humor, o jornalismo e a liberdade de expressão –, colegas jornalistas se refugiavam correndo no telhado para escapar de dois indivíduos que portavam metralhadoras kalachnikovs e miravam, certeiros, algumas de suas maiores estrelas, como os cartunistas Cabu, Charb, Wolinski e Tignous. Mais ou menos como se extremistas brasileiros invadissem a Barão de Limeira em São Paulo, ou a Getúlio Vargas, em Belo Horizonte, e exterminassem a sangue frio Laerte, Jaguar, Adão.

Não foi o barulho da rua que me alertou para o acontecido, embora eu more muito perto do local da tragédia, o 11éme arrondissement. A reação imediata e prontamente visível foi a avalanche nas redes sociais francesas e alguns amigos brasileiros que tentavam entrar em contato para saber se, por acaso, eu trabalhava no tal “jornal satírico francês”.

Não se enganem, os franceses estão, como se diria, outragés. Ou, em bom português, gravemente insultados, ofendidos, violentados. Não importa se de direita ou de esquerda, de classe alta ou baixa, eruditos ou não. O que se nota nas reações dos parisienses e franceses em geral é um grande sentimento de profanação à um dos pilares daquilo que todos reverenciam aqui como o non plus ultra desta civilização centro-europeia: a “República” francesa, a “Marianne” de seio nu que leva a tocha da liberdade, o sentimento republicano, o sentimento de pertencer à um código e uma estrutura de valores sólidos, civilizatórios e intocáveis.

Bem, não mais intocáveis como antes, como pudemos assistir nesta quarta-feira de inverno e sirenes. Nesse sentido, os assassinos deste 7 de janeiro de 2015, tendo eles agido isoladamente ou acobertados por um desses grandes grupos terroristas contemporâneos – Estado Islâmico ou Al-Qaeda – seguiram à risca e com conhecimento de causa a reflexão de Winston Churchill que dizia que, para destruir um povo, basta atacar seus mitos. Os jovens mascarados que mataram hoje Cabu, Charb, Wolinski e Tignous atingiram em cheio o alvo descrito ha mais de 70 anos pelo velho general inglês.

A história contemporânea reinventa um jogo de xadrez inextricável, no qual parece impossível discernir do que nos apropriamos, de onde, ou porque, consciente ou inconscientemente. Os discursos de ódio se misturam e se complementam. O fenômeno não é isolado na França, mas em todo o continente europeu, basta notar a recente força de partidos de extrema direita no Reino Unido, na Grécia, ou mesmo na Suíça.

Conversando com um amigo policial, que não estava de plantão nesta quarta-feira, questiono se, na opinião dele, poderia ter havido uma falha na segurança da redação do Charlie Hebdo, uma vez que as ameaças contra seus jornalistas se tornaram uma constante depois da primeira charge ironizando o profeta Maomé, publicada ainda em 2006. A resposta irada de meu amigo policial resume um pouco do sentimento dos franceses: “A única falha que houve foi a dos árabes e dos muçulmanos”. Fim de conversa. Sim, mesmo se todas as autoridades muçulmanas parisienses e francesas tenham se assomado rapidamente à frente das câmaras de TV para repudiar o ato criminoso, cada um deles sabe muito bem que a enorme comunidade muçulmana francesa será a principal vitima deste ataque terrorista perpetrado por radicais islâmicos.

O presidente francês François Hollande declarou, logo após chegar ao local do crime, que não havia duvidas de que se tratava de um ataque terrorista e que a França deveria se proteger e buscar uma “unidade nacional”. Não se enganem, mais uma vez: a palavra presidencial abre uma brecha na caça às bruxas do povo muçulmano em território francês, sobretudo aos magrebinos, ou seja, muçulmanos vindos de antigas colônias francesas na região do Magreb, o Norte da Africa islâmico.

Unidade nacional é um termo falacioso que antecipa, sem sombra de duvida, reações nacionalistas exaltadas. Incrível como mesmo a esquerda e a direita francesa misturam seus discursos nesse momento de fragilidade: Unidade nacional é uma expressão que cansei de ouvir, ainda em 2009, sob o governo de direita de Sarkozy, quando cheguei na França. Uma pena, nenhum dos grandes cartunistas do Charlie Hebdo teria aprovado minimamente esta confusão ideológica.

sem proteção Minha vizinha do prédio onde moro se exalta, comentando o acontecido: “Eles vão pagar caro por isso!”. (Mas quem são “eles”, eu me pergunto? Como se proteger de uma geração de jovens franceses, nascidos na exclusão dos subúrbios, filhos ou netos de pais argelinos, tunisianos, egípcios, marroquinos ou de outras nacionalidades, que escutam rap francês e sonham em manejar kalachnikovs em treinamentos jihadistas na Síria? Que se comunicam e se reproduzem na velocidade das redes sociais? Que são diariamente acusados de subtrair os “direitos sociais” dos “verdadeiros franceses”? “Eles” têm um rosto?). Meus amigos, diretores de cinema, jornalistas, produtores, técnicos do audiovisual, alguns escritores, atores, todos reagem em uníssono no Facebook com imagens de apoio ao Charlie Hebdo.

Milhares saíram às ruas e se reuniram na Praça da República (Place de la République), no Centro de Paris, onde, à noite, ocorreu uma grande movimentação de repudio à violência e de apoio às vitimas do ato criminoso. Minha lista de amigos franceses do Facebook se tornou uma grande massa de quadrados pretos de luto, mudando sua foto de perfil em homenagem ao jornal, com o nome Charlie em branco no meio. Noto, surpresa, que as manifestações se propagam pelo Facebook com a mesma velocidade que o ódio.

Marselha, Lyon, Dijon, Toulouse, Amiens, Annecy, Bordeaux, Colmar, Grenoble, La Rochelle, Metz, Montpellier, Rennes, Strasbourg: dezenas e dezenas de cidades francesas também fizeram grandes manifestações, organizadas por meio das redes sociais, para reagir à tragédia. Outros países se juntaram aos franceses: holandeses, alemães, brasileiros, irlandeses, espanhóis, suecos, austríacos, canadenses e outros cidadãos do mundo se uniram contra o assassinato da liberdade de expressão, perpetuado no coração de Paris. Esperemos apenas que essa grande congregação de vozes se lembre da noite de ontem não como uma incitação ao medo, aos nacionalismos exacerbados ou ao ódio religioso, mas como uma grande assembléia realmente civilizatória de integração e solidariedade.


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