Waldyr Calheiros Novaes marcou a história política de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, embora seja alagoano. Defendeu os oprimidos da ditadura e participou, no Concílio Vaticano II, em Roma, dos debates para a renovação da Igreja. Quando reacende lembranças, nada pode calá-lo. Nem o rangido da cadeira de balanço nem o ronco do caminhão que passa conseguem se sobrepor à voz calma e firme do homem. Depois do descanso da sesta, o bispo emérito de Barra do Piraí e Volta Redonda, municípios no sul do Rio, seleciona as palavras ao recordar acontecimentos dos últimos 50 anos – principalmente do Vaticano II, em que foi decidido, por exemplo, que as missas não seriam mais celebradas em latim e, sim, na língua local.
As mudanças foram positivas, segundo o religioso. A principal delas foi abandonar o modelo hierárquico– aquele no qual o papa manda no bispo, que manda no padre, que manda nos fiéis – para adotar um sistema circular, em que as paróquias são mais independentes. Com o tempo, as transformações foram perdendo força, tanto que até no papado de Bento XVI “não havia muita esperança de que houvesse novidades”. Entretanto, a inesperada renúncia do líder pode ser um pontapé para modificações, diz o bispo. Agora, a expectativa é de que o novo dirigente retome os ideais de comunhão da Igreja e a proximidade com os fiéis, propostos no Concílio.
Em um suspiro longo, ele admite que há muito oque transformar. Acaricia a aliança com Deus no dedo anelar, apoia as costas no encosto de sua cadeira de madeira e diz, em tom categórico: “Ou a Igreja muda ou perde todos os fiéis. Ela precisa ser útil à sociedade”. A preocupação tem fundamento. O Brasil ainda é o país com mais católicos no mundo, com 123 milhões em uma população de 200 milhões. Entretanto, o último censo mostra que eles podem deixar de ser maioria em breve. Em 10 anos, o percentual caiu de 74% para 64,6%. Um em cada quatro abandonaram a religião da década de 1970 até 2010.
Dom Waldyr justifica a declaração no desejo de que o catolicismo se atente mais às dores e sofrimentos do povo e diz acreditar que em muitos lugares as paróquias ainda não são tão comprometidas com a comunidade. As pessoas se afastaram da igreja nos últimos anos, segundo dom Waldyr, porque os religiosos e os próprios pais batizavam as crianças e não cuidavam de evangelizá-las para que se firmassem na religião. “Tentou-se por meio da primeira comunhão ainda prender a criança… Mas daí para frente o adolescente começa um mundo novo que a igreja não disse nada a ele”, diz.
E mais: atento a essas transformações do mundo, dom Waldyr também critica o fato de algumas paróquias só batizarem os pequenos se os pais forem casados. “Isso é do século passado”, ironiza. Há, ainda, mais revoltas reprimidas na opinião do bispo. A cobrança de taxas por sacramentos, por exemplo, como matrimônio e batizado, é injusta. “Eu meto o pau nisso. Sabe por quê? E os pobres que não podem pagar? É uma desigualdade que a gente não pode aceitar com tranquilidade.” Pelo período em que foi vigário na Igreja de São Francisco Xavier, na Tijuca, tirou a cobrança de todas as celebrações.
REFLEXOS DO PASSADO Dom Waldyr ficou conhecido no período da ditadura como um dos “bispos vermelhos”. A conotação da cor, dada pelo governo à época, faz referência ao comunismo. Ao tocar nesse assunto, ele ri e balança a cabeça com a enxurrada de lembranças que o sobressaltam. “Naquela época era normal acusar de comunista quem defendia as pessoas”, justifica. E foi o que ele mais fez. Ganhou o apelido porque acolhia os maltratados ou perseguidos pelo sistema opressor e, inclusive, ajudava-os a fugir para o Paraguai e o Uruguai. Revoltado com outrora, lamenta: “Assistimos a uma carnificina: de jogar gente dentro do Rio Paraíba, desaparecer pessoas… ”.
Ameaças? Sim. Dom Waldyr sabia que estava sendo perseguido. “O medo é difícil de me pegar, sabe?”, diz, sério. Ele quer que sua missão permaneça mesmo quando não for mais o bispo da diocese, exige que todos os fracos sejam defendidos, como um mandamento do evangelho, e que qualquer perseguido politicamente que procure a Igreja deva ser acolhido. Mesmo que para isso tenha que defender a mais polêmica das suas opiniões: a legitimidade da luta armada em casos de defesa de humilhados. “Quando existe uma opressão grande e imposta pela força, esses oprimidos podem se levantar para se livrar disso. Com armas? "Tem que ser. Nessas situações, é legítimo.”
No Centro de Volta Redonda há um monumento desenhado por Oscar Niemeyer que faz parte da história de dom Waldyr Calheiros. O concreto lembra a morte de três operários, em 9 de julho de 1988, durante uma greve na Companhia Siderúrgica Nacional. Os trabalhadores, que reivindicavam reajuste salarial, foram agredidos pelo Exército e pela Polícia Militar. Resultado: três mortes. O velório foi seguido por uma multidão revoltada e o bispo tomou o microfone para dizer palavras de conforto em cima de um caminhão, enquanto ministrava o rito religioso. O monumento foi bombardeado em seguida por desconhecidos e o estrago da dinamite ainda está lá, 20 anos depois. Ao rever as fotos desse dia, dom Waldyr silencia. Depois, resmunga. "É... foi uma coisa louca.” Os dedos percorrem a fotografia na tentativa de reconhecer algumas pessoas perto dele na imagem. Aponta para o caixão: “Aqui foi o Barroso”, diz, com intimidade. “A família me disse que ele criava em casa um sabiá e todo dia falava com o animal ao ir e voltar do trabalho. Na manhã seguinte à morte dele, o sabiá também morreu. Como é que até os passarinhos entendem, não é?”, intriga-se.