Jornal Estado de Minas

DEVOÇÃO E EMOÇÃO

Padre Eustáquio deixou um legado inspirador por onde passou

Missa celebrada por padres brasileiros na cidade belga de Lovaina, onde está sepultado São Damião, que inspirou os caminhos de Padre Eustáquio (foto: Gustavo Werneck/EM/D.A PRESS)

Tremelo e Lovaina, Bélgica - “Sou o missionário mais feliz do mundo. Minha maior felicidade é servir o Senhor em seus filhos doentes, rejeitados pelos outros homens”. A vida de São Damião de Molokai (1840-1889), autor da frase, inspirou os caminhos de Padre Eustáquio. Nascido Jozef de Veuster na cidade de Tremelo, na Bélgica, e pertencente à Congregação dos Sagrados Corações, o missionário viveu 16 anos (de 1863 a 1889) na ilha Molokai, no Havaí (antigo reino), cuidando de leprosos. Morreu em decorrência da hanseníase. Foi beatificado em 1995 e canonizado em 2009.




 
Na viagem pelos caminhos de Padre Eustáquio, os mineiros visitaram, em Tremelo, a casa onde nasceu o padre Damião, hoje museu (Damiaanmuseum). Em Tremelo, Padre Eustáquio fez o noviciado (período necessário para quem entra numa ordem religiosa). No livro “O vigário de Poá”, de 1944, o autor, padre Venâncio Hulselmans, escreveu: “Humberto van Lieshout não teve dúvidas de que seu herói, Damião, o leproso, tirara suas forças para o apostolado dessa adoração silenciosa e dessa reparação, que, desde pequenino, o convidava  a esquecer-se de si mesmo, a pensar nos Sagrados Corações, que pediam, como desagravo das injúrias sofridas, almas vítimas, almas que se sacrificassem para consolar seus corações magoados, trazendo-lhes almas, e, se possível, famílias inteiras”.   
 
Bem na entrada do museu, pintado de branco com portas e janelas verdes, há um busto do santo, o qual chama a atenção pelas feições retorcidas – certamente, uma forma encontrada pelo artista para significar a lepra. No acervo, há esculturas – uma delas, impressionante, com o interior da madeira criando o corpo e o rosto de São Damião –, retratos de família, o piso de mosaicos, documentos e mapas. Impossível não ficar, alguns minutos, vendo o traçado da viagem do missionário belga, da Europa ao Havaí. Na época, século 19, foram cinco meses, de navio, navegando pelos oceanos Atlântico e Pacífico e passando pelo extremo da América do Sul.

INSPIRAÇÃO 


O altar dedicado a Nossa Senhora é um dos destaques do museu, e emocionou Lucimara do Rosário Silva Reis, pedagoga e empreendedora residente em Patrocínio, cidade onde existe a Paróquia São Damião de Molokai. “Essa viagem nos permite aprender mais sobre Padre Eustáquio e também sobre São Damião. Estou duplamente feliz, comemorando 25 anos de casada e 50 anos de idade. É um milagre estar aqui, pois estou viva graças a Deus e a minhas orações”, contou Lucimara, que tem dois filhos e conheceu “da fome, quando criança, a muitas enfermidades, na juventude”, e, hoje, cheia de saúde, pode ver as belezas que o mundo oferece.   
 
O altar despertou a atenção da educadora física e empresária, Isabela Amaral Guimarães, de Patrocínio: “Estudei em colégio de freiras, vou sempre à missa, então, cada momento dessa viagem ilumina ainda mais minha devoção”. Da mesma cidade, a professora Sônia Fátima Romão Nunes comungou da ideia. “Fiquei emocionada várias vezes. Sinto alegria, mas também choro diante da grandeza das histórias de São Damião e Padre Eustáquio.” Com brilho nos olhos, a servidora pública Betânia Jaber de Britto Guimarães disse que se sentiu “tocada” pela história de São Damião, a qual inspirou o beato.

MISSA


Em Lovaina (Leuven, em holandês, e Louvain, em francês), a visita foi ao túmulo de São Damião, que morreu no Havaí e teve os restos mortais transladados, em 1936, para a Capela Santo Antônio, no Centro da cidade localizada a 30 quilômetros de Bruxelas, capital do país. No espaço com a foto do santo, houve missa celebrada pelos religiosos da Congregação dos Sagrados Corações: os padres Vinícius Maciel, Osvânio Humberto Mariano, Edvaldo Carneiro e o irmão Antoniel Santos da Silva.  

Na manhã fria de primavera, num ambiente aconchegante, com iluminação realçando as paredes cobertas de tijolinhos, marca registrada da arquitetura local, os peregrinos rezaram e agradeceram. “Já alcancei muitas graças. Sou devota de Nossa Senhora de Lourdes, e foi ela, quem, há 20 anos, me conduziu ao Padre Eustáquio. Nesta peregrinação, recarrego as energias”, relatou a professora aposentada Jane Seabra Ferreira, de BH.




 
Também devota de Padre Eustáquio, a psicóloga Sany  Almeida, contou que sentiu uma grande paz em vários momentos, principalmente nas horas em que o grupo estava reunido em capelas e igrejas. “Sou muito conectada em Deus, e considero exemplar o trabalho missionário de São Damião e de Padre Eustáquio.”

MÁRTIRES BEATIFICADOS

Paris, França – Fundada em 1800, na França, a Congregação dos Sagrados Corações (SSCC) se encontra presente em países da América, Europa e Ásia, sendo os religiosos chamados de “Padres de Picpus”, porque sua primeira casa foi na Rua Picpus, em Paris. “A congregação já enviou mais de 200 missionários, dos quais 150 holandeses, ao Brasil”, disse padre Vinícius Maciel.
 
Em Paris, como parte da peregrinação à Europa, os mineiros assistiram, na Igreja de Saint-Sulpice, à cerimônia de beatificação de cinco mártires executados durante a Comuna de Paris, sendo quatro da SSCC – (Ladislas Radigue, Polycarpe Tuffier, Marcelin Rouchouze e Frézal Tardieu – e um da Congregação dos Religiosos de São Vicente de Paulo (Henri Planchat). Eles foram fuzilados em 26 de maio de 1871, durante o sangrento desfecho da Comuna de Paris.




 
O tom solene da cerimônia presidida pelo prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, cardeal Marcello Semeraro, enviado pelo Papa Francisco, elevou os sentimentos no compasso dos ritos do Vaticano, como a procissão de entrada de dezenas de padres e seminaristas, com as tradicionais batinas brancas da congregação.
 
Na porta da Igreja de Saint-Sulpice (curiosidade: no templo, foi filmado “O Código Da Vinci”, de 2006), todos os convidados receberam lenços brancos de seda trazendo os rostos dos “Martyrs de la Foi”, Mártires da Fé, para amarrar no pescoço. Do canto de entrada ao de saída, a solenidade de beatificação, em 22 de abril, trouxe à memória de alguns, guardadas as devidas proporções de tempo e espaço, a do Padre Eustáquio, realizada no estádio do Mineirão, em 15 de junho de 2006.
 
Em entrevista ao jornalista Marcelo Silveira, da assessoria do Santuário Arquidiocesano da Saúde e da Paz, o cardeal Marcello Semeraro se declarou satisfeito com a igreja lotada e acendeu as esperanças. “Estamos diante de uma causa de martírio, e isso nos convence daquilo que o papa também nos pede: que, hoje, haja mais mártires e testemunhas da fé, seguindo o modelo daqueles que tornaram fecunda a história da Igreja, principalmente neste momento particular em que vivemos uma descristianização da Europa Ocidental. Pedimos ao Senhor que, mais uma vez, o sangue dos mártires seja a semente de novos cristãos. Fiquei muito impressionado ao ver esta igreja, grande e antiga, cheia de pessoas adorando e louvando o Senhor.”





RITOS


Construída entre 1646 e 1870, a Igreja Saint-Sulpice (São Sulpício, em português), onde há um gigantesco órgão musical, e todo o ritual de beatificação encantaram os mineiros, a exemplo da médica Isabella Romão, de Patrocínio. “Senti a força da fé católica, o tanto que ela representa e como pode promover o encontro de culturas diferentes, pessoas de diversos países, incluindo os brasileiros”, afirmou Isabella, que, no dia seguinte, com o grupo, foi à missa na sede da Congregação dos Sagrados Corações. “Os cinco foram mortos injustamente, mas ficou, para nós, o significado do martírio, uma semente de fé.”
 
Ao lado da filha Isabella, a engenheira e professora Josefina Júlia Romão de Souza (Jô) encontrou na palavra “intensa” a melhor para definir a cerimônia de beatificação dos cinco mártires. “Pude conhecer melhor a história dos religiosos que morreram defendendo sua fé. Foi um momento raro, com a multidão de cristãos católicos presente. Tudo disso só me fez agradecer pelas bênçãos que recebi na vida, assim como peço graças para minha família, meus amigos e as novas amizades feitas na viagem”, disse Jô, que concretizou, em Paris, um antigo sonho: visitar a Capela da Medalha Milagrosa.
 
Com o lenço branco amarrado no pescoço, Sandra Maria Fruet Romagnoli, que trabalha na Ação Social do Santuário Arquidiocesano da Saúde e da Paz, no qual coordena a catequese infantil, participou, com alegria da cerimônia, a exemplo de Elizabeth Ângela Rosa, empresária e voluntária no santuário e moradora do Bairro Paquetá, na Região da Pampulha. “Por uns momentos da peregrinação, fiquei meio ‘fora do ar’, não acreditando plenamente em tudo que estava vivenciando. Sentimentos fortes, bonitos. O fato de estar na missa de beatificação dos mártires e percorrer os caminhos do Padre Eustáquio me levou a uma experiência transformadora.”   

HOMENAGENS


São muitas as homenagens ao beato, conforme destaca padre Vinícius Maciel, reitor do Santuário Arquidiocesano da Saúde da Paz e vice-postulador da Causa de Canonização de Padre Eustáquio. As celebrações começaram em 7 de abril do ano passado, quando se completaram 80 anos da chegada dele a Belo Horizonte, foram retomadas com as homenagens pelas oito décadas do falecimento e irão até 21 de julho de 2024, para marcar os 80 anos da criação da Paróquia dos Sagrados Corações. “Já em 2025, festejaremos o centenário da chegada dele ao Brasil”.

DEZ TEMPOS DO BEATO


» 1890 – Em 3 de novembro, Hubbertus nasce em Aarle- Rixtel, na Holanda. Para a vida religiosa, na Congregação dos Sagrados Corações, recebe o nome de Eustáquio.





» 1915 – Inspirado no ideal missionário de São Damião de Molokai, Eustáquio professa votos temporários e perpétuos, para, quatro anos depois, ser ordenado sacerdote.

» 1925 – Parte para o Brasil como missionário, passando por Água Suja (atual Romaria, na Região do Alto Paranaíba), Poá (SP) e outras cidades do interior mineiro, além do Rio de Janeiro (RJ).

» 1942 – Chega a Belo Horizonte, onde fica por pouco mais de um ano e quatro meses. Picado por um carrapato, Padre Eustáquio morre em 30 de agosto de 1943, no Sanatório Minas Gerais (atual Hospital Alberto Cavalcanti), na capital.

» 1943 – Em 31 de agosto os restos mortais de Padre Eustáquio são conduzidos para o Cemitério do Bonfim. Seu túmulo se torna lugar de preces e devoção.

» 1949 – Em 31 de janeiro ocorre o translado dos restos mortais de Padre Eustáquio para a capela mortuária, na entrada da Matriz dos Sagrados Corações, iniciada pelo próprio beato e hoje conhecida como Igreja de Padre Eustáquio.





» 1956 – Em 5 de fevereiro, com a fama de santidade se propagando, há o início dos trabalhos preliminares para instauração do processo de canonização de Padre Eustáquio.

» 2003 – Em 12 de abril, o papa João Paulo II aprova e publica oficialmente o decreto sobre a heroicidade das virtudes de Padre Eustáquio. O Servo de Deus se torna Venerável Padre Eustáquio.

» 2005 – Em 19 de dezembro, o papa Bento XVI autoriza a publicação do decreto reconhecendo um milagre atribuído por intercessão de Padre Eustáquio. Padre Gonçalo Belém é curado de um câncer na garganta.





» 2006 – Em 15 de junho, Padre Eustáquio é beatificado, em cerimônia no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte.

Depoimento

TRABALHO E REFLEXÃO

“Conheço a história de Padre Eustáquio há décadas, e vejo que muita gente se surpreende por ele ser holandês. Sei também da devoção popular, e, inúmeras vezes, ouvi relatos de graças alcançadas por intercessão dele. Entrevistei o padre Gonçalo Belém, falecido em 2006, aos 83 anos, cuja cura de um câncer foi reconhecida como milagre pela Santa Sé. Agora, acompanhar os peregrinos rumo à terra natal do beato, na Holanda, e, visitar, na Bélgica, o local onde fez o noviciado, foram situações de grande curiosidade do repórter, pontuados pela emoção de um simples mortal. Saí do Brasil de coração aberto, tentando ficar meio invisível no grupo de peregrinos, para narrar melhor cada momento, mas acabei ‘vestindo a camisa’ e me tornando “cada vez mais visível”, conforme definiu Lucimara Reis, de Patrocínio. Além de cerimônias e encontros religiosos, em cinco países, visitamos o Santuário de Fátima e Lisboa, em Portugal, o Museu do Louvre, em Paris, cidades costeiras da Holanda, com seus diques, os atrativos turísticos de Bruxelas e Amsterdam, e, finalmente, todas as maravilhas do Vaticano e muitas de Roma, na Itália. Para o jornalista, ótima oportunidade de trabalho, enquanto, no plano pessoal, excelentes dias de reflexão em tempos mundialmente tão conturbados.”  (GW)