Jornal Estado de Minas

BIODIVERSIDADE

Big Brother dos bichos: câmeras monitoram animais de área de cavernas em MG


Parque Nacional da Serra do Gandarela – As câmeras não perdoam. Como na casa do reality show Big Brother Brasil, que estreia hoje, dispositivos espalhados para estudos pelo Parque Nacional da Serra do Gandarela, na Grande BH, flagraram a intimidade de vários bichos entre 21 de julho de 2021 e dezembro do ano passado.



Como se fossem os participantes da casa - os "brothers" -, foram registradas cenas como a algazarra dos jacus, um lado extrovertido e a paquera desses pássaros, tendo as folhagens dos campos rupestres servindo de "edredon". O lobo-guará, mais reservado, aparece rapidamente, uma única vez, e toma seu rumo. E a onça-parda, maior predador local, ingressa na escuridão da caverna no meio da sua caçada.

O levantamento é parte do trabalho do Opilião Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE), que avalia os hábitos de animais que frequentam a região de mais de 270 cavernas, com vários instrumentos, tais como as câmeras automáticas presas a árvores, disparadas por sensores de movimento e se valendo de luzes infravermelhas para funcionar à noite.

Se fossem mesmo participantes do reality show, daria para ver vários traços de comportamento e saber quem está "jogando", como dizem os brothers e internautas. Flagrados várias vezes de passagem, os veados nunca entraram nas cavernas, mas aparecem desconfiados na mata, pé ante pé, atentos a possíveis perigos, antes de sumir por entre as árvores.





As antas também estavam de passagem e foram clicadas pelas câmeras automáticas, mas não rumaram para o interior das cavidades rochosas, seguindo um comportamento já clássico da espécie de passo praticamente em linha reta, sem a intenção de se desviar de seu rumo.

Nas bocas das cavernas e no seu interior, foram registrados muitas aves e mamíferos. Pequenos roedores revolvendo o solo e detritos sobre pedras à procura de insetos para se alimentar, ágeis coelhos saltando por entre troncos e rochas, seriemas de olhar atento varrendo os arredores por cima das moitas e até urubus se espreguiçando no seu banho de sol. 

Tamanduás-mirim, com o desenho preto nos ombros e barriga que lembra um elegante suspensório, também circularam pelas entradas rochosas na sua busca por insetos e larvas, algumas vezes até se erguendo sobre duas patas. O mais tímido mesmo foi o lobo-guará, que também não entrou na caverna, mas chegou bem perto das câmeras e, depois do último clique, desapareceu na floresta.



As aves jacus não passaram despercebidas e a algazarra delas foi captada nas imagens do projeto (foto: OGrEE / Divulgação)


Os gatos-do-mato e outros felinos ainda sem identificações também se mostraram curiosos com as câmeras, registrando várias aproximações dos aparelhos. Um deles, que se desconfia ser uma jaguatirica, chegou a poucos palmos da câmera e lançou um olhar aparentemente meigo, que no Big Brother poderia ser encarado como um charme para ter a simpatia da audiência - lembra até o trejeito de grandes olhos brilhosos e carentes que o personagem da Disney Gato de Botas usa para comover as pessoas. Mas que está longe disso na realidade do Gandarela.

"Os animais como a jaguatirica e a onça-parda, são predadores e muitas vezes foram vistos em caçadas. As câmeras podem chamar a atenção pelo ruído de seus disparos, pelas luzes infravermelhas que se refletem nos olhos adaptados para enxergar sob luz muito baixa e até mesmo por algum resíduo de odor humano que ainda pode ter ficado no equipamento", afirma o químico Luciano Faria, um dos integrantes do estudo do OGrEE e também doutor em História da Ciência.

Para ele, os mais importantes registros foram das onças-pardas, também conhecidas como suçuaranas, os maiores predadores do parque. "Pudemos ver que as cavernas fazem parte da rotina desses animais. Registramos muitas atividades das onças passando pelas bocas das grutas, nas passagens de animais que ficam no mato. Uma delas entrou na gruta de canga de minério de ferro, que chamamos de Gorceix, e a atravessou", conta Faria.





De pertinho

A reportagem do Estado de Minas foi até essa gruta para conhecer o ambiente subterrâneo usado pelas onças caçadoras do Gandarela. Trata-se de uma cavidade escondida em um matagal denso e sem trilhas aparentes. Só depois de se embrenhar no matagal, afastando moitas de varas compridas e galhos de árvores que a boca fica visível, tendo meio metro de abertura sob uma placa de rocha de minério de ferro. Para um homem entrar, só se arrastando por mais de cinco metros.

No primeiro salão já se pode ficar agachado ou ajoelhado e sentir uma temperatura muito inferior à exterior, trazendo refresco após o esforço de rastejamento. A água da chuva exterior percola o teto pingando em vários pontos e empossando no solo argiloso. Dois corredores sem saída dão a impressão de ser bons abrigos para o descanso das onças-pardas. Mas o caminho que o animal flagrado seguiu foi adiante, por mais 15 metros, onde após mais rastejamento se sai na outra boca da caverna, na face oposta da montanha.

"Esse é um trabalho multidisciplinar, com biólogo, químico, engenheiro ambiental, geógrafo, entre outros. Armamos uma câmera de controle nas trilhas de animais próximas às cavernas, para ter uma noção dos animais que passaram. Outras duas monitoram quais entraram nas cavidades para conhecer esse comportamento".





O "Big Brother" dos animais do Gandarela mostra que as cavernas fazem parte da rotina de muitos animais, sejam predadores ou presas. No interior das cavidades naturais também foram postadas caixas rasas de acrílico com areia para registrar as pegadas deixadas pelos bichos. Fezes são coletadas para análises e estações monitoram umidade, temperatura, condições climáticas e de pressão atmosférica.

"A gente suspeitava que os animais usavam as cavernas para se abrigar das chuvas ou do frio, mas isso pouco influiu, mostrando, pelo menos inicialmente, que a adaptação deles ao Gandarela é total e que a caverna é só mais um ambiente que frequentam. Outra tese mostra que mesmo cavernas próximas a passagens de carros e do contato com a civilização podem ter até mais frequência da fauna que as mais afastadas", pondera Faria.

Com desenho preto nos ombros e barriga que lembra um suspensório, o tamanduá-mirim também circulou pelas entradas rochosas em busca de alimento (foto: OGrEE / Divulgação)

Flagrantes de ameaças ao parque

As câmeras em cavernas e passagens de fauna para conhecer mais do comportamento dos animais do Parque Nacional da Serra do Gandarela, na Grande BH, também registraram situações que representam ameaças à biodiversidade da unidade. O mais grave, e que acomete vários espaços de conservação, é o incêndio florestal, que chegou a ser captado se alastrando bem próximo a uma das câmeras.





"É sabido que cerca de 95% dos incêndios em unidades de conservação são de origem criminosa, iniciados por pessoas. Um deles quase destruiu uma das nossas câmeras, chegando bem perto do equipamento", afirma o químico e ambientalista Luciano Faria, um dos integrantes do estudo sobre animais do Opilião Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE).

Outros problemas encontrados são relacionados à caça e coleta de espécimes da biodiversidade do parque, que constituem crimes ambientais.

"Foram fotografadas duas pessoas com facões e chapéus percorrendo os locais das câmeras, aparentando serem caçadores de animais da fauna silvestre ou coletores de plantas como orquídeas e bromélias para a venda no mercado negro", observa Faria.

De acordo com o especialista, também foram flagrados cães de caça, muito bem alimentados e com coleiras, farejando o ambiente atrás de animais silvestres e também matilhas de cães domésticos que fugiram de seus donos nas fazendas e vagam pelo mato, quase selvagens, podendo atacar a fauna silvestre local.





Durante o projeto, uma das câmeras conseguiu captar um incêndio florestal na unidade de conservação (foto: OGrEE / Divulgação)

Onde fica

Criado em 2014, o Parque Nacional da Serra do Gandarela está localizado a 40 quilômetros de Belo Horizonte, abrangendo os municípios de Caeté, Itabirito, Mariana, Nova Lima, Ouro Preto, Raposos, Rio Acima e Santa Bárbara. A unidade de conservação tem exuberantes serras, rios e cachoeiras, como a do Índio e do Viana, ambas em Rio Acima, e a das 27 voltas, em Nova Lima.