Jornal Estado de Minas

VIDAS EM TRANSIÇÃO

De Emília a David: a cirurgia que, há um século, desafiou a sociedade de BH


O ano é 1917. A cidade, Belo Horizonte. Nesse tempo e espaço, vidas se encontram e mudam seus destinos. Pelas mãos de um médico mineiro, em cirurgia pioneira, a jovem Emília, de 19 anos, torna-se David – rapaz que, com o nome alterado na carteira de identidade, se casaria mais tarde com uma antiga colega do colégio feminino em que estudara antes da operação. O caso ficou conhecido popularmente como a primeira “mudança de sexo” realizada em Minas Gerais e, até a década de 1930, teve grande repercussão, pois outras intervenções do tipo seguiram sendo feitas na cidade. Histórias ligadas a temas atualíssimos da medicina e dos costumes, que a partir de hoje o Estado de Minas reconta, resgatando episódios marcantes da capital inaugurada havia apenas duas décadas e que ainda dispunha de poucos avanços na área médica.





 

Esta reportagem, caro leitor, é mais do que uma reunião de texto com fotos, entrevistas, pesquisa. Trata-se, na verdade, de um convite para uma viagem no tempo, mais exatamente à Belo Horizonte de 1917, cidade fundada duas décadas antes e então com cerca de 18 mil habitantes na zona urbana (perto de 55 mil moradores, no total) – atualmente, a capital dos mineiros, a caminho dos 125 anos, abriga cerca de 2,5 milhões de pessoas. A série “Vidas em transição – De Emília a David ” traz à tona uma história mineira que, encoberta pelo tempo, ilumina-se com depoimentos, informações e descobertas.



Ilustração mostra o médico mineiro David Corrêa Rabello (1885-1937), cirurgião pioneiro em cirurgias plásticas em Minas Gerais e conhecido por cirurgias de redesignação genital em pacientes como Emília, que virou David em 1917 (foto: Academia Mineira de Medicina/Reprodução)
Foi naquele ano – quando o mundo estava mergulhado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução de Outubro de 1917 mudava os destinos da Rússia e ocorriam as aparições de Nossa Senhora, em Fátima, Portugal – que BH registrava um fato que marcaria sua história, com estardalhaço na imprensa. Em cirurgia considerada pioneira no estado, feita pelo médico mineiro David Corrêa Rabello (1885-1939), a jovem de 19 anos Emília Soares, apelidada Miloca, tornou-se David – nome escolhido em homenagem ao cirurgião. Com mudança na “carteira de idade”, como se chamava o documento de identidade, e atualização do sexo.

“É possível imaginar as agruras pelas quais David Soares tenha passado naquele fim de ano e ao longo de 1918”, diz o professor, escritor e pesquisador Luiz Morando, autor do trabalho “Miloca que virou David” – Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939), no qual revela a ocorrência de mais 20 casos semelhantes até o fim da década de 1930.



Embora considerada pela imprensa uma cirurgia de “mudança de sexo”, e assim tenha caído na boca do povo, “não era isso”, corrige Morando, informando se tratar de um diagnóstico de “hipospádia” – uma malformação genital que acomete pessoas do sexo masculino.

Se a percepção popular estava errada, o certo mesmo é que o bisturi do doutor Rabello mudou vidas, comportamentos, destinos. E David, que mais tarde se casou com uma mulher, enfrentou o Golias da malícia, do deboche e do preconceito, gigante que costuma se levantar para assombrar brasileiros e brasileiras mais de um século depois.

Resgatar a história de Emília (1898-1951), que virou David Soares, é uma tarefa árdua, pois o protagonista não teve filhos. Foi missão também cheia de surpresas. No cartório do Primeiro Subdistrito do Registro Civil, o mais antigo da capital, foi feita, especialmente para o Estado de Minas, uma pesquisa da documentação existente entre 1897 e 1935, não sendo encontrado o nome de Emília.



Mas como o pai de Emília era funcionário público, transferido para BH com a mudança da capital, surgiu a possibilidade de ela ter nascido em Ouro Preto, na Região Central de Minas, o que acabou sendo confirmado. Emília veio ao mundo um ano após a inauguração de BH.

Já no Cemitério do Bonfim, há o registro do sepultamento em 29 de maio de 1951 de David Pereira Soares, funcionário público, filho de Antônio Pereira Soares. A causa da morte foi tuberculose pulmonar e caquexia. A mãe, Castorina Soares, morreu dois anos antes da cirurgia da “filha”. 

Aos poucos, luzes vão se acendendo sobre a história, que tem parte guardada no Centro de Memória da Medicina (Cememor) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em BH, onde há um rico acervo contando a trajetória da instituição de ensino por meio de obras raras, mobiliário, equipamentos médico-científicos, painéis fotográficos de turmas e outros registros.



Um espaço do Cememor reserva atenção especial ao rumoroso caso, que gerou a apresentação de uma monografia na então denominada Faculdade de Medicina de Bello Horizonte, pelo professor David Corrêa Rabello.

Entre fotos, documentos e desenhos, salta aos olhos o retrato em preto e branco da turma de alunas da Escola Normal (atual Instituto de Educação de Minas Gerais). Na foto, Emília é a primeira da fila.

Não se destaca apenas pela posição no grupo de 15 jovens, mas especialmente pela altura.
Diante do acervo, a historiadora Ethel Mizrahy Cuperschmid, do Cememor, apresenta documentos importantes, como a tese de concurso para professor substituto de Rabello, de 1918, com base na cirurgia realizada no ano anterior. Há também fotos, desenhos e publicações a respeito do caso.



Toninho se comove ao lembrar do sofrimento do padrasto: "Homem de coragem" (foto: Fotos: Gladyston Rodrigues/EM/DA. Press)

Maria se tornou Marino, servidor da Aeronáutica

Entre os casos semelhantes ao de Emília registrados até a década de 1930 está o de Maria Marques da Silva, natural de Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), que, após a cirurgia, em setembro de 1938, tornou-se Marino Marques da Silva.

“É uma história rara, não é? Tenho muito orgulho dele, respeito, gratidão!”, diz, emocionado, o aposentado Laerte Antônio Jacó Ferreira, de 70 anos, sobre o padrasto Marino, que era servidor da Aeronáutica na mesma cidade, se casou com a viúva Maria dos Prazeres Marques, já mãe de quatro crianças, e faleceu em 1978.

Conversar com o simpático Laerte Antônio, apelidado Toninho, é como mergulhar na história sorvendo avidamente cada palavra, e buscando no silêncio a compreensão para a força das lágrimas que às vezes brotam.



“Meu padrasto era reservado, não falava sobre esse assunto, a cirurgia... Mas nós, os filhos, sabíamos. Era honesto, trabalhador, católico praticante, desses de não perder missa, e gostava demais de plantar, cuidar de horta, manter o quintal sempre limpo”, lembra Toninho, que tem quatro filhos.

Na sua casa no Bairro Várzea, em Lagoa Santa, Toninho conta que o padrasto e a mãe, que chegara de Jaboticatubas (na Grande BH) viúva, com os filhos, conheceram-se no trabalho. “Um agradou do outro.

Comigo, então, tinha um carinho especial, me tratava bem, mas também sabia ser severo, se preciso.” Segurando a cópia de documentos funcionais de Marino e da mãe, ele diz não ter objetos e retratos pertencentes ao padrasto.

Muitas vezes, o passado assombrou a vida de Marino, antes “moça muito bonita, de cabelo na cintura”, que quase se casou com um conterrâneo.

Mas o “problema” que levaria à cirurgia de desambiguação de sexo foi revelado publicamente e a união não aconteceu. Ao longo do tempo, não foram poucas as vezes em que antigos conhecidos, ao enxergarem Marino com roupas masculinas, recorriam ao deboche para atingi-lo com as flechas do preconceito.



“Como era ousado para a época, ele não se calava e atirava pedras. O mundo mudou, mas meu padrasto sofreu muito no tempo em que viveu. Foi um homem de coragem para enfrentar tudo”, afirma.

Mergulho no passado de BH

Foram necessários cinco meses de trabalho por parte da equipe do EM para buscar informações, apurar os fatos, iluminar caminhos desconhecidos da maioria dos brasileiros e dar forma à série “De Emília a David – Vidas em transição”.

Órgãos públicos, cartórios, registros de cemitério, centros de pesquisa, e, claro, mineiros de boa memória que nasceram na primeira metade do século passado foram fundamentais para o resultado aqui apresentado. Infelizmente, muito se perdeu de um período tão marcante da história da medicina e dos estudos do comportamento humano.

Um ser humano em choque com corpo e o ambiente

Para conhecer melhor a história de Emília Soares, que aos 19 anos se tornou David pelas mãos do doutor Rabello na Belo Horizonte de 1917, o leitor deve fazer uma necessária volta no tempo, tirando da bagagem qualquer preconceito e procurando entender a época, as limitações da ciência e a sociedade local no início do século 20.



Em resumo, estava em cena uma vida humana em choque com seu corpo e com o ambiente. “Emília Soares era considerada uma pessoa estranha para os padrões da época: criada como mulher, não correspondia à imagem física que se fazia de pessoas femininas – não possuía seios, tinha ombros avantajados, rosto com traços masculinos, era desajeitada”, diz Luiz Morando, professor e escritor que se debruçou sobre o caso.

A trajetória de Emília está descrita no Centro de Memória da Medicina (Cememor), da UFMG: “Em 1917, o professor David Rabello recebeu em seu gabinete médico a paciente E.S.. Em trajes femininos, E.S. dá logo a ideia de estar em travesti, a toilette muito pouco cuidada. A blusa cai-lhe simplesmente sobre o peito inteiramente chato e as saias fogem-lhe sobre as ancas sem nenhum apoio; traz sapatos fortes”.

“E.S foi criado como mulher até os 19 anos, educado em um dos melhores colégios femininos de Belo Horizonte antigo, compartilhando dormitório, banhos e segredos com moçoilas de sua idade. Logo ao primeiro exame, o médico verificou se tratar de um caso de malformação genito-urinária. A moçoila E.S. era um rapaz!”

Conforme a explicação médica, “vistos em conjunto, os órgãos genitais apresentam uma semelhança grosseira com os órgãos genitais femininos, dado o pequeno desenvolvimento do pênis, que lembra vagamente um clitóris hipertrofiado. A circunstância de apresentar a uretra aberta, em sua parte inferior, desde o meato até a uretra membranosa, faz com que também a mucosa exposta lembre um pouco a vulva entreaberta. Entretanto, um exame, mesmo superficial, não deixa nenhuma dúvida sobre o caso”.



Documentos existentes contam que “E.S. foi operada pelo médico que, finalmente, conseguiu revelar o rapagão David, escondido pela ignorância e pudores da tradicional família mineira. De acordo com Pedro Nava (escritor mineiro, 1903-1984), o doutor David Rabello corrigia os erros gramaticais da natureza, quando põe no feminino o que o masculino deveria ser. David se casou com uma colega de escola por quem já tinha sentimentos que considerava pervertidos, enquanto ainda o cobria a roupagem feminina”.

“O escândalo gerado pelo fato de um homem ter compartilhado as intimidades de jovens donzelas casadouras foi abafado pelas famílias aristocráticas das Alterosas, o que não impediu a circulação do caso à boca pequena e até mesmo a encenação de uma peça de teatro chamada ‘O patinho torto’, obra escrita por Coelho Netto (1864-1934).”

O Cememor da Faculdade de Medicina da UFMG conserva um exemplar com o texto da peça, explica a historiadora Ethel Mizrahy Cuperschmid, assim como outras publicações a respeito do caso e documentos, entre eles teses escritas pelo doutor Rabello, inclusive com base na cirurgia de Emília/David. “Na época, o caso foi um escândalo, mas evidenciava um desconhecimento das pessoas com o próprio corpo”, resume Ethel.





Entrevista/Luiz Morando - Professor e escritor

Luiz Morando, escritor e pesquisador, autor do trabalho Miloca que virou David - Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939) (foto: Túlio Santos/EM/D.A Press - 20/1/21)

 

Podemos dizer que, naqueles tempos, a “história de Miloca que virou David” era uma vitória da ciência contra a ignorância e a favor da felicidade humana?

Não necessariamente. Emília Soares era considerada uma pessoa estranha para os padrões da época: criada como mulher, não correspondia à imagem física que se fazia de pessoas femininas – não possuía seios, tinha ombros avantajados, rosto com traços masculinos, era desajeitada. Há uma imagem de corpo inteiro dela no livro “O desatino da rapaziada”, de Humberto Werneck.

Para a mentalidade e os padrões da época, era uma pessoa que a medicina considerava um “erro da natureza” passível de ser corrigido. Nesse sentido, não é uma “vitória da ciência contra a ignorância”, mas imposição de um padrão e uma perspectiva de que a medicina deve regular os corpos e os hábitos, independentemente do que uma pessoa deseja para si.

Talvez, no caso específico de Emília Soares, ela tenha desejado passar a expressar quem ela realmente desejava ser, mas diversos outros casos nas décadas subsequentes demonstram que médicos impunham sua vontade ao paciente, executando procedimentos sem consultá-los ou passando por cima da vontade deles.



O caso médico ocorrido em 1917, em BH, foi pioneiro no país? Qual era a especialidade do doutor David Rabello?

Não daria para dizer que foi o pioneiro, mas foi o primeiro a ganhar notoriedade e grande repercussão na época. David Rabello era cirurgião. Relata-se que ele fez uma cirurgia de apêndice em si mesmo para um grupo de alunos...

A imprensa da época tratou o caso como “mudança de sexo”, o que não corresponde à realidade. O que foi, então, a cirurgia em Emília Soares?

Emília Soares era portadora de hipospádia, uma malformação da genitália que acomete pessoas do sexo masculino. A hipospádia (na época, referida também como pseudo-hermafroditismo) é uma condição congênita relativamente rara (de origem genética ou hormonal), na qual o indivíduo do sexo masculino apresenta a abertura da uretra não na extremidade da glande, mas em algum ponto da face ventral do pênis.

Há formas mais leves de manifestação, em que a uretra está mais próxima da extremidade da glande, e formas mais graves, em que a porção final da uretra se encontra na bolsa escrotal ou no períneo. O fato é que, quanto mais extremo o grau de hipospádia, mais ambígua se torna a definição do sexo do recém-nascido por um médico ou parteira (como era bastante comum no início do século 20).



O caso de Emília Soares não foi de “mudança de sexo”, como divulgado à época, mas uma alteração cirúrgica para desambiguação do sexo. No entanto, é fato que ao deixar de ser Emília para passar a ser David (em homenagem ao médico que a operou), ocorreu um processo de transição de gênero em que uma pessoa de 19 anos deixou de se vestir e de ter hábitos considerados femininos para adotar vestimenta e hábitos considerados masculinos.

Podemos dizer que doutor Rabello fez uma “correção”?

Aos olhos de hoje, David Rabello fez uma cirurgia para desambiguizar a genitália de Emília. Não há propriamente uma correção (que remete à ideia de erro, de desvio), mas uma adequação da genitália.

A ideia de correção sempre esteve presente nesses casos. O caso de 1938, de Maria Marques, foi gritante: ela/ele falou que não queria ser operado/a, segundo a cobertura jornalística da época, e ainda assim foi submetido à cirurgia. E sempre com a ideia de que são desviantes, que precisam ser restaurados à ordem, à norma.



De Miloca para David, houve uma transição de sexo?

Houve uma transição de gênero, uma vez que o sexo de Emília era masculino – ter um pênis, que se desenvolveu malformado. No entanto, ela precisou transicionar de gênero: desconstruir o gênero/padrão/norma feminino e construir um gênero masculino. Nesse sentido, a teoria de que o gênero é uma construção sociocultural é correta.

Com a cirurgia, houve alteração de nome e atualização de sexo no documento de identidade de Emília. Sem dúvida, um grande avanço para a época...

Sim, houve essas alterações baseadas em laudo emitido pelo médico David Rabello. É uma situação bem diferente do que ocorre com pessoas transgênero, que não são portadoras de hipospádia, mas que não se reconhecem com o sexo que lhes foi atribuído no nascimento.

Promoveu-se um verdadeiro escândalo na época. David Soares foi alvo de chacota e piada nos jornais belo-horizontinos e de outras capitais, quando apareceu na capital mineira vestido como se atribui ao modo masculino. Isso já deixa transparecer um período de humilhação pelo qual passou em Belo Horizonte após a cirurgia. Mas ele viveu até 28 de maio de 1951.



Após a cirurgia, David recebeu algum acompanhamento psicológico? Como a família reagiu, já que, naqueles tempos, casos assim eram considerados “aberração”?

Não tenho notícia de que David Pereira Soares tenha recebido algum tipo de acompanhamento psicológico. Também não foi mencionado nos jornais como a família reagiu. Mas seu caso inspirou o romancista e dramaturgo Coelho Netto a escrever a peça “O patinho torto”, em 1918.

Passados 105 anos, qual é a “moral da história”? No sentido de lição para as gerações seguintes...

Acho que a mensagem que fica é que todos têm direito a viver da maneira mais prazerosa, saudável e confortável como acham que deve ser para si.

Clique na imagem para ampliar e veja a história de Emília/David em quadrinhos

(foto: Lelis/EM/D.A Press)


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