Jornal Estado de Minas

Artistas de rua encarnam estátuas vivas espalhados por BH

Aos olhos estáticos de Carlitos, a cidade é o palco com milhares de personagens, ações e destinos. Cada pessoa tem sua dinâmica: uns vão, outros voltam, param, respiram, seguem seu curso. “Sou espectador de um grande espetáculo de arte em movimento”, conta José Carlos Gomes, de 45 anos, professor de arte cênica e, dependendo da inspiração,  pronto para se transformar no imperador Júlio César, em celestial arcanjo ou no Carlitos imortalizado por Charles Chaplin.






Estátuas vivas se movem em solo belo-horizontino e podem ser encontradas em pontos de grande circulação de público, a exemplo da Praça Sete e Avenida Afonso Pena – especialmente aos domingos, durante a Feira de Artes, Artesanato e Variedades (Feira Hippie) –, no Centro, ou diante do Mercado Central, no Bairro Barro Preto. Algumas são itinerantes, ultrapassam os limites da cidade, às vezes as divisas do estado, e, embora silenciosas, agradecem elogios, oferecem mensagens a quem dá uma contribuição e fazem “ouvidos de mercador” se escutam palavras desagradáveis.

Carlos Gomes estava a postos na Afonso Pena, desta vez personificando Carlitos. Professor de teatro e também dono de uma espetaria no Bairro Bonfim, na Região Noroeste de BH, Carlos tem dois segredos para se manter estático das 8h às 14h, com, evidentemente, pequenas pausas para concentração e meditação. “A parte mais expressiva, no meu caso, é o olhar, e fico muito tempo sem piscar devido também à maquiagem”, revela o belo-horizontino, que se apresenta ainda na Feira do Bairro Eldorado, em Contagem, na região metropolitana da capital.

Nos três anos em que “encarna” Carlitos, Carlos Gomes, batizado com esse nome em homenagem ao maestro e compositor Carlos Gomes (1836-1896), fez amigos e recebe frases de admirações no alto de um banco de 55 centímetros, na esquina das avenidas Álvares Cabral e Afonso Pena, no Centro da cidade. As contribuições chegam à caixinha, que fica aos pés dele, e o dinheiro é sempre bem-vindo. “Com a pandemia, tive que parar de dar aulas. Em janeiro, volto”, revela, enquanto uma criança ganha sorriso em troca da nota depositada na caixinha.




 
Segredos e mensagens

Numa das entradas do Mercado Central, na esquina da Avenida Augusto de Lima com a Rua Curitiba, a artista de rua Shirley Climene Bráulio atrai os olhares com sua Charlotte, a “camponesa francesa” vestida de verde dos pés à cabeça, com rosto pintado na mesma cor e carregando um cestinho de vime. Quem faz um elogio ou oferece uma contribuição vê a estátua viva girando o corpo, e é imediatamente convidado a retirar uma mensagem da caixa.

Nas proximidades do Mercado Central de BH, Shirley Bráulio se transforma na camponesa francesa Charlotte, que encantou Alice, de 8 anos, e a mãe dela, Poliana, com suas mensagens de incentivadoras (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press - 19/12/21)
Há cinco anos na função, Shirley conta detalhes da vida de Charlotte. “Ela traz a cor da natureza, pois nasceu e foi criada no campo. É alguém feliz, que vive de espalhar alegria, beleza, e pode estar em vários lugares do mundo ao mesmo tempo, pois, por aqui, passam pessoas de vários países em direção ao interior do mercado”, explica a artista de rua, que se harmoniza à paisagem e faz todo seu preparo no próprio local. O lado negativo está só quando tem chuva forte, mas aí Charlotte dá seu jeito e encontra proteção sob a marquise.

Com a experiência, Shirley observou que as estátuas vivas se vestem, geralmente, das cores dourado, prateado ou de barro. Foi então que se decidiu pelo verde. “Fiz os testes e criei a tintura nesse tom, com um material metálico, para a maquiagem”, revela. E qual o segredo para ficar tanto tempo sem se mexer?, pergunta o repórter. A resposta está na ponta da língua: preparação mental.





Diante de Charlotte, Alice Ferreira, de 8 anos, se encanta na mesma medida em que brilham os olhos da mãe, a promotora de vendas Poliana Cristina Pereira, moradora do Bairro Esplanada, na Região Leste de BH. “Desperta o interesse de todo mundo”, afirma Poliana, pouco antes de Alice abrir a mensagem ofertada por Charlotte. A menina lê e sorri, pois a recomendação escrita é para que realize os seus sonhos. E qual o seu desejo? “Ser cantora”, responde Alice.

Minutos de fascinação
 
Na Praça Sete, uma espécie de coração da capital, o cearense Carlos Alberto Melo Oliveira, de 55 anos, vive seu dia de Rei Mago. Com a coroa e as barbas longas, ele tem seu ritual para não se cansar demais durante as quatro horas de pé: sentar a cada hora. “Senão, como se diz na minha terra, os cambitos (pernas) não aguentam”, afirma. E lá se vão 10 anos desde que Carlos Alberto começou a trabalhar como estátua viva.

Um Osama bin Laden (1957-2011) prateado foi a primeira encarnação, seguido de personagens do filme “Guerra nas estrelas”. “Recebo muitos cumprimentos e sei que a fascinação maior é das crianças”, orgulha-se o “rei mago”, que também pode ser encontrado na feira da Afonso Pena aos domingos ou em cidades do interior de Minas, como Diamantina, no Vale do Jequitinhonha.





Parado no local de maior trança-trança de gente na capital, o cearense garante que a capital mineira “é muito interessante”. Mirando a estátua viva, o vigilante Ramon Cassimiro, morador do Bairro Camargos, foi direto ao ponto: “Quebra a rotina, chama a atenção e incentiva a cultura.”

Na pele de Samurai, Lucas Silva, cozinheiro por profissão, diz ter ampliado as experiências na terra distante e que tão bem o acolheu, embora já tenha sido vítima de preconceito e de agressão verbal durante as apresentações (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)

Na sua galeria de personagens, o baiano Lucas Araújo da Silva abriga São Francisco de Assis, o Juquinha da Serra do Cipó, na Região Central de Minas Gerais, e o Samurai. Na feira de domingo da Afonso Pena, ele incorporava a última figura, com o rosto e o corpo cobertos de argila. Levantando a túnica, Lucas, que é cozinheiro, mostrou várias camadas de roupa: “Assim evito a umidade na pele, para não pegar pneumonia nem ter alergia”, explica.

Há sete anos, quando morava na rua, em BH, o baiano de Vitória da Conquista resolveu ampliar a experiência se tornando estátua viva. E gostou, pois se sente acolhido em Minas Gerais, “um estado que abraça as pessoas de fora”, define. Com a ajuda desse aconchego, consegue pagar o aluguel e tocar a vida.





Mas nem tudo são flores – é bom lembrar. Em todo o tempo do trabalho artístico, ao mesmo tempo em que ouviu palavras de incentivo como “guerreiro!”, motivo de força, escutou, em silêncio,  as expressões “vagabundo!” ou “tá na moleza”, para tentar baixar o astral.

Lucas se recorda de que, numa cidade do interior mineiro, ao ser puxado pelo braço, de forma agressiva, por um fiscal da prefeitura local, revidou e acabou detido por dois dias. Em BH, ele, às vezes, precisa bater o pé para marcar território, pois ouviu de um colega que “na via pública só podem ficar, como estátua viva, os artistas de rua”.

Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte informa que tal tipo de função independe de autorização do município, conforme a Lei 10.277/2011, regulamentada pelo Decreto 14.589/2011, referente a atividades artísticas e culturais em praça pública (artes cênicas,  artes plásticas, apresentação de música, poesia, literatura e teatro). (GW)