Jornal Estado de Minas

MINERAÇÃO

Obras em barragem da Vallourec levam novo pesadelo a comunidade vizinha

 

A água, antes límpida, agora só desce barrenta. Uma lama fina misturada a minério cinzento recobre pedras e leito dos córregos, trazida pela enxurrada em momentos de chuva ou mesmo nos dias abertos de sol. Os poços que serviam para se banhar e pescar vão sendo assoreados. Em vez de cobrir os banhistas, mal chegam aos joelhos. São mudanças observadas no Córrego Carrapato (Ribeirão Piedade) que preocupam moradores de Piedade do Paraopeba desde que a Barragem Santa Bárbara, na Mina de Pau Branco, da Vallourec, 1,3 quilômetro acima, começou a passar por obras e a acumular ao seu lado uma pilha de material removido na intervenção. Como o Estado de Minas mostrou na edição de ontem, área próxima à represa recebe deposição semelhante à do setor norte do complexo. Lá, outro reservatório, o Dique Lisa, transbordou após desabamento de parte de uma pilha parecida, soterrando e interditando por quase um dia a rodovia BR-040 na altura do trevo de Ouro Preto.





 

A área em questão será alvo de visita de deputados estaduais da Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa e de monitoramento apoiado pelo Ministério Público de Minas Gerais, segundo a Procuradoria-Geral de Justiça. A Vallourec garante que as estruturas são seguras, que as obras na Barragem Santa Bárbara foram apenas para instalar um novo vertedouro e estruturas de drenagem, e não para ampliação do reservatório, e que a pilha erguida vai receber somente o material que foi removido para a intervenção do vertedouro, e não rejeitos, como o do depósito que desabou sobre o barramento e inundou a rodovia, deixando a área em nível 2 de emergência (evacuação de locais de risco e obras emergenciais).

 

A equipe do EM esteve na área da Barragem Santa Bárbara e constatou movimentação de muitos operários, caminhões e escavadeiras. Três pontos do setor se encontravam com trânsito de maquinário e homens, o que sugere obras ou intervenções de manutenção. Um deles é a base do barramento, que detém quase 1 milhão de metros cúbicos (m3) de sedimentos, segundo a Vallourec, 100 vezes mais que o Dique Lisa, que soterrou a rodovia BR-040. Um ponto de concentração de pedras pode ser observado próximo ao vertedouro recém-constituído, quando a barragem esteve classificada em nível 1 de emergência – situação que indica necessidade de intervenções urgentes.

 

Outro ponto fica na ombreira esquerda da estrutura (um dos pontos onde a barragem se apoia no relevo montanhoso) e na margem do mesmo lado, onde caminhões despejaram pedras. Mais acima, a cerca de 200 metros da lâmina d'água escura, é onde escavadeiras e caminhões erguem a Pilha Santa Bárbara. Esse é o local que vizinhos da barragem e lideranças ambientais temem que sirva futuramente para receber rejeitos, dando margem a deslizamentos como o que interditou a BR-040 – embora a empresa garanta que se destine apenas a receber material removido por escavações da obra do vertedouro, abaixo.





 

"Nunca mais tive sossego. Quando escuto uma zoeira no meio do mato, às vezes de vento, às vezes de máquinas da mineração, já acho que é o pesadelo desaguando atrás da gente de novo, como foi lá em Brumadinho", Maria Dalva dos Santos, moradora de Piedade do Paraopeba (foto: Edésio Ferreira/EM/D.a press)

 

Tempestade e desespero

 

Sob a chuva forte de 8 de janeiro deste ano, as notícias de que a rodovia tinha sido encoberta por milhares de metros cúbicos de material minerário de uma das barragens da Mina de Pau Branco já deixava em alerta a comunidade de Piedade do Paraopeba, do outro lado do empreendimento da Vallourec. “Aí, de repente, desceu a inundação do Córrego Carrapato, que vem de outra barragem da mineradora, a Santa Bárbara, onde estão fazendo as obras”, lembra o cabeleireiro Rodrigo Pereira de Souza, de 41 anos. “A água subiu e entrou em algumas casas, destruiu a ponte e as ruas. Foi um pânico, todos querendo sair, com medo de descer a barragem em cima da gente, como foi em Brumadinho”, conta, fazendo referência a 2019, quando 270 pessoas morreram com o rompimento da Barragem B1, da Mina Córrego do Feijão.

 

Até hoje, as ruas por onde passa o Córrego do Carrapato têm erosões, pontos que desabam aos poucos, engolidos pelo manancial. As cabeceiras da ponte de acesso à parte baixa da comunidade foram escavadas pela força da correnteza e a ligação precisou ser interditada. Canalizações de água e esgoto foram expostas e arruinadas em vários pontos. Nas paredes das casas, marcas de lama chegam à altura da cintura. Do lado de dentro, sofás, colchões e aparelhos eletrodomésticos se perderam, encobertos pela correnteza que invadiu as moradias.

 

Esse desespero, tão próximo de casa, de onde se via a fuga dos vizinhos do que imaginavam ser uma onda descendo da barragem, persegue a costureira e dona de casa Maria Dalva dos Santos, de 65 anos, quando dorme e até quando está acordada. “Nunca mais tive sossego. Quando escuto uma zoeira no meio do mato, às vezes de vento, às vezes de máquinas da mineração, já acho que é o pesadelo desaguando atrás da gente de novo, como foi lá em Brumadinho”, conta. “O que eu queria mesmo era que a Vallourec indenizasse a gente. Comprasse a nossa casa. Nunca mais vou ter sossego aqui. Nunca mais aquela vidinha simples”, lamenta a costureira.





 

Lama com traços de minério que passou a tingir as águas e assorear o Córrego Carrapato é uma das maiores preocupações de moradores, que temem ser prenúncio de problemas (foto: Edésio Ferreira/EM/D.a press)
 

Água turva é sinal de preocupação

 

O escurecimento da água que desce da barragem em obras é um dos principais fatores de preocupação para a comunidade de Piedade do Paraopeba, já que a condição nunca tinha sido permanente, mas apenas fenômeno passageiro, após as chuvas, como relata o jardineiro Jaime Antônio dos Santos, de 69 anos, que há 50  frequenta o Vale do Córrego Carrapato, seja para pescar, nadar ou namorar. “Depois da Barragem (Santa Bárbara) e das obras nela e desta pilha é que começou a descer essa lama, esse minério. A gente não pode mais pescar, tomar banho. E ainda fica sem saber se está seguro aqui. Porque toda barragem que se partiu disseram antes para não nos preocuparmos”, compara.

 

Os artistas plásticos Jessica Martins, de 33, e José Alberto Bahia, de 39, viram o paraíso ecológico que alugaram no meio da mata atlântica se revestir de incertezas e poluição desde que as obras na barragem começaram. “Pedimos insistentemente para que a Vallourec nos leve até a barragem, nos mostre o que está fazendo. Precisamos saber se a lama e o minério que descem da barragem pelo córrego são de rejeitos. Mas adiaram as visitas e não marcam outras”, afirma Jéssica.

 

“Ouvimos funcionários aposentados da empresa dizendo já terem visto o despejo de rejeitos na barragem, e isso nos preocupa. Essa lama não estava aqui até novembro do ano passado. Agora está encobrindo as pedras, que são estruturas de apoio de líquens e algas que purificam o córrego e trazem vida para o ecossistema. Isso está se perdendo”, afirma Bahia, que mora com Jéssica a pouco mais de 500 metros do reservatório.





 

“Descartamos esse projeto”

 

A Vallourec informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a Barragem Santa Bárbara não vem sendo ampliada (alteada), e que tanto essa estrutura quanto a pilha formada acima não recebem e não receberão rejeitos de minério de ferro. Segundo declarado no último dia 24 pelo gerente de meio ambiente da mineradora, Leonardo Maldonado, em audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas, a obra emergencial da Vallourec não constitui construção, ampliação ou alteamento do reservatório.

 

Mas moradores e ambientalistas acusam a empresa de usar na instalação do vertedouro o mesmo projeto de ampliação enviado em 2017 para futuramente também depositar rejeitos na barragem e na pilha. 

 

“Esse projeto antigo realmente previa um alteamento de 4 metros da Barragem Santa Bárbara, mas informamos que o projeto foi descartado a partir do momento em que saiu a Lei das Barragens. Descartamos totalmente esse projeto, pois a legislação o vedava completamente. Não foi de forma alguma implantado”, assegura o representante da mineradora.

 

“O licenciamento e a previsão da pilha que consta junto do licenciamento emergencial foram definidos naquele lugar para evitar qualquer transporte da obra por Piedade do Paraopeba, mesmo que não fosse minério, por isso fizemos estudos para disposição da pilha. Não é de estéril e nem de rejeito da atividade minerária, mas só das escavações e das obras do vertedouro. Não tem relação com as atividades da mina”, disse.