Jornal Estado de Minas

CRIMINALIDADE

Perícias podem tirar pessoas de situação de segregação

A Polícia Civil de Minas anunciou que, desde 3 de março, o  Instituto Médico Legal Dr. André Roquette (IMLAR), em Belo Horizonte, passou a oferecer serviço de perícia para avaliar condições de retomada à liberdade de pessoas que se envolveram em crimes e que vivem situações de sofrimento mental. O atendimento, por agendamento, é para todo o estado.




 
O Instituto conta com uma equipe de médicos-legistas especializados em psiquiatria que vão analisar cada caso. O procedimento, que deverá ter um prazo de 45 dias desde o recebimento da pessoa no IML até a conclusão do laudo, envolve o exame psiquiátrico do indivíduo presencialmente, além da análise de diversos documentos de outros órgãos, como pareceres de assistência social, laudos psicológicos, relatórios de unidades prisionais e avaliação do convívio e suporte familiar.
Fernanda Otoni, psicanalista e supervisora das redes municipais de saúde mental de BH e Contagem e responsável pela criação e coordenação, por quase duas décadas, do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAIPJ) no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) disse ver com otimismo o anúncio do serviço. "É juridicamente a condição para que muitas pessoas possam sair das prisões e manicômios judiciários, situações de segregação."
 
"Isso é muito importante porque a pessoa em situação de sofrimento mental, em um momento de intensa angústia, pode cometer um crime e, como consequência jurídica, receber uma medida de segurança. Ela tem que responder por essa sanção jurídica, submetendo-se a um tratamento em saúde mental. O processo judicial só se encerra após a sentença acolher  a avaliação pericial  que declara a cessação da periculosidade. Então, a perícia é uma condição jurídica para ela resolver as questões com a justiça, pois o ordenamento determina que o encerramento da medida de segurança se dá quando a a pessoa passa por uma avaliação pericial que diga que ela está em condições de levar a própria vida em liberdade, conforme seu projeto singular de saúde mental."




 
Essas medidas de segurança destinadas a esse público, é um instituto jurídico previsto no final do século 19 e início do 20. À época, esse procedimento pericial foi chamada de avaliação da cessação de periculosidade. Havia uma suposição que, pessoas em situação de sofrimento psíquico  eram  perigosas e só poderiam retomar o convívio social se cessasse a periculosidade.
 
Lidava-se com o paradigma da periculosidade, da segregação, supondo que as pessoas eram perigosas em função de sua situação psíquica.

Com a reforma psiquiátrica (Lei 10.216/2001), explica Fernanda Otoni, essa classificação segregativa, a do indivíduo perigoso, não é mais admitida. "Nós podemos dizer que uma  pessoa em situação de intensa angústia, se seu sofrimento urgir sem saída, ela pode cometer um ato contra si mesma ou terceiros. Em muitos casos eclodem situações de angústia que se dão em ambiente familiar, de trabalho, no trânsito, por exemplo. Nada mais humano. As respostas agressivas, por vezes violentas, faz parte do humano."
 
Entretanto, ela lembra que, por muito tempo, prevaleceu a antiga concepção de que algumas pessoas eram intrinsecamente perigosas, portavam o mal em si, resultando no seu encarceramento em manicômios, locais de segregação. Essa ideia foi absorvida pelo ordenamento jurídico. O entendimento era de que essas pessoas que cometem crimes em situação de surto precisariam ficar em manicômio judiciário, em nome da defesa social.



"Crença essa, responsável por segregação e genocídio de muitos, em muitos lugares", explica a psicanalista.
 
O projeto de reforma psiquiátrica foi apresentado em 1989 pelo então deputado Paulo Delgado (PT-MG). Após 12 anos, o texto foi aprovado e sancionado como Lei nº 10.216/2001, ficando conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei Antimanicomial e Lei Paulo Delgado.
 
A partir da mobilização por uma saúde mental mais humana, houve demostração pública de "que é possível conviver com a loucura em liberdade, mas no campo jurídico ainda vigora o instituto de medida de segurança que ainda se sustenta na ideia da presunção da periculosidade. Temos aí um descompasso entre o ordenamento jurídico e a vida como ela é, onde já se sabe ser possível cuidar da saúde psíquica em condições de liberdade, no espaço de convívio e trocas compartilhadas. Aliás, é assim que se cuida", esclarece Otoni.
 
As perícias são previstas jurídicamente, o processo aguarda o laudo de cessação de periculosidade, para que o juiz  avalie e determine as condições de retorno. "Sempre houve peritos fazendo isso, mas há uma escassez desse serviço em Minas e muitas pessoas estão na lista de espera  aguardando sua realização.  O fato do IML assumir essa função, é visto com muita satisfação", sugere Fernanda Otoni.





TJMG criou serviço de atenção ao paciente judiciário. 

Em dezembro de 2001, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) criou o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário,(PAIPJ). Hoje o programa está vinculado à presidência do TJMG e tem como coordenadora-geral a desembargadora Márcia Milanez. Desde sua criação, já passaram pelo programa mais de 6 mil pessoas. Atualmente, são 1.100 em acompanhamentos.
 
O propósito é  oferecer a essas pessoas, tratamento adequado, dentro da rede pública de saúde. "Podemos perceber que quando cometem crime, é uma reação a situação de angústia. Assim que tem acesso a todos os recursos de saúde mental de forma humanizada, respondem de forma criativa, diversa, única. Podemos perceber nesses anos, como é obsoleta a ideia de manicômio judiciário e segregação dessas pessoas", reconhece Fernanda.
 
O serviço começou de forma piloto em Belo Horizonte e passou a ser programa institucionalizado pelo TJ com criação de núcleos espalhados pelo estado. Há alguns anos foi  firmado convênio com a residência multidisciplinar de psiquiatria no Hospital Municipal Odilon Behrens, para realizar avaliação dessas pessoas, num formato de perícia interdisciplinar.



Muitos casos passaram a ser avaliados dentro de outro modelo, ao invés de presumir a periculosidade, subverteu-se o entendimento, no sentido de que é preciso ser avaliada a presunção de sociabilidade.

"É preciso identificar os recursos que o indivíduo apresenta e  com os quais conta e que nos faz presumir que ele tem condições de seguir com sua vida de acordo com sua singularidade, no convívio com os outros, sem recorrer a violência do ato como resposta a situações de angústia, pois ele tem meios para estabelecer conexões de cuidado, integrar seu sintoma, seu jeito estranho de ser no espaço coletivo, em rede. Avaliação que presume sociabilidade procura verificar as condições de laço social e não do perigo," explica a psicanalista.

Fernanda Otoni complementa que o mal participa da condição humana, a presunção do perigo é universal, uma vez que o risco de algo acontecer a partir de uma situação de angústia e responder de forma agressiva, existe em todos nós.

"Mas com quais recursos o sujeito conta para responder quando uma situação de angustia eclode? Ele pode responder de outra maneira? Se ele estabelece  conexão com os outros, com uma rede, formas simbólicas de expressar seu sofrimento, e recorrer a pontos de apoio, tudo isto favorece o laço social."



Ela ressalta que as pessoas que cometem ato violento ou agressivo,  não o  fazem de uma hora para outra. "Elas anunciam, dão sinais, ficam inquietas, agitadas, angustiadas, tudo é sinal de que a pessoa está desarticulada, desorganizada, e, se entra em cena uma rede de apoio e tratamento, a violência deixa de ser resposta, e o sujeito encontra uma forma de tratamento da angústia antes do ato. Esta é a aposta! No momento da crise, de pensamentos que angustiam é preciso ter onde se apoiar, alguém para conversar. Se isso não vem, a violência pode ser uma resposta. Fortalecer o acesso a recursos simbólicos e materiais, através de um processo coletivo de cuidados, quanto mais ampliarmos recursos sociais menos, a gente encontra situações de ruptura social", conclui.

O que diz o Código Penal, que é de 1940
 
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
 
Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.




 
Prazo
 
§ 1º - A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos.
 
Perícia médica
 
§ 2º - A perícia médica realizar-se-á ao termo do prazo mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução.
Desinternação ou liberação condicional
 
§ 3º - A desinternação, ou a liberação, será sempre condicional devendo ser restabelecida a situação anterior se o agente, antes do decurso de 1 (um) ano, pratica fato indicativo de persistência de sua periculosidade.
 
§ 4º - Em qualquer fase do tratamento ambulatorial, poderá o juiz determinar a internação do agente, se essa providência for necessária para fins curativos.