Jornal Estado de Minas

HISTÓRIA

A polêmica evolução dos costumes no Brasil em torno de motéis


Um dos mais famosos motéis da Região Metropolitana de Belo Horizonte saiu de cena e nem todos se deram conta do apagar das luzes. Ainda vigoroso quarentão, localizado no trevo de Sabará, na divisa desse município com a capital, o Green Park foi demolido durante a pandemia para, no local, surgir uma loja de atacarejo com inauguração marcada para o fim do mês.



Se deixa saudade e evoca lembranças, a antiga construção rodeada de árvores vira uma página na vida de mineiros e mineiras que, desde a abertura do estabelecimento, em 1976, curtiram a  intimidade a dois – às vezes, a três, nunca se sabe. Em Minas, a exemplo do Green Park, a história dos motéis vai longe, tem casos intensos, cheios de surpresas, alguns ampliados pela intolerância, e, como sempre ocorre quando há sexo envolvido, de gente interessada em flagrar ou atrapalhar os momentos de prazer dos outros.

Muitas das histórias brasileiras, incluindo as mineiras, povoam o recém-lançado livro “Os motéis e o poder – Da perseguição pelos agentes de segurança ao patrocínio pela ditadura militar”, vasto panorama do setor desde a década de 1920 à atualidade, de autoria dos jornalistas Ciça Guedes –, paulista –, e Murilo Fiuza de Melo – paraense radicado no Rio de Janeiro.

Para começar, Murilo garante que os motéis não se encontram em decadência: “No nosso país, eles têm características regionais, conseguem se reinventar, em cada região é diferente. O modelo brasileiro é único no mundo, não há contato entre as pessoas e o pessoal que trabalha no motel”. Não foi à toa que o ambiente inspirou músicas de Roberto Carlos e rocks de Rita Lee, ganhou estudos específicos em arquitetura e, algumas vezes, migrou para o quarto dos casais, com espelhos no teto, camas redondas, iluminação pulsante.





Se hoje as pessoas contam com total privacidade nos motéis, vale dizer que nem sempre foi assim. Na década de 1970, havia os “paparazzi de motel”, fotógrafos que ficavam escondidos para flagrar aqueles do seu interesse – geralmente pessoas casadas em encontros proibidos com amantes (no sentido amplo da palavra). Depois, partiam para o ataque ameaçando as vítimas ao apresentar os retratos em branco e preto.

”SANTO DO PAU OCO” 

Com apoio policial, o autointulado ''padre Alarcon" levava grupos de fiéis para porta dos motéis, nas décadas de 1960/70, para constranger casais (foto: NELSON SANTOS/REVISTA O CRUZEIRO/1966)


Espremidos entre as leis do desejo e a força da falsa moralidade, os belo-horizontinos frequentadores de motel penaram no fim da década de 1960 e início da de 70. No livro, os autores contam a história de Luiz Mário Villarroel Alarcon (1926-1998), autointitulado padre Alarcon, um suposto boliviano, que, na década de 1950, pediu asilo ao Brasil, alegando ser perseguido político em seu país. “Nos anos 1960, foi popular no interior de Minas, onde arregimentava multidões com seus ‘milagres’ até se mudar para Belo Horizonte.” Conforme reportagem publicada em 3/12/1966, na extinta revista “O Cruzeiro”, o padre, então com 40 anos e chamado na matéria de “O novo messias do sertão mineiro”, viveu entre Oliveira e Carmo da Mata e ainda em Divinópolis, Centro-Oeste do estado.

Na capital, com o apoio da polícia, padre Alarcon liderava grupos de fiéis, em procissão, da Igreja Católica Apostólica Brasileira, uma dissidência da Igreja Católica, contra os motéis da região da Pampulha. “Eles rumavam, à noite, para a frente dos estabelecimentos e, com velas nas mãos, protestavam contra aquelas ‘casas de Satanás’. A intenção era criar constrangimento aos casais que ali chegavam”, diz Murilo, explicando que Alarcon não passava de um santo do pau oco, por ter sido condenado por pedofilia e, mesmo depois de cumprir pena em São Paulo, acusado de cometer o mesmo crime em outras ocasiões. “Por duas vezes, o Supremo Tribunal Federal (STF) tentou expulsá-lo do país. Em vão. Nenhum país o aceitou.”





A cruzada empreendida por Alarcon levou a batidas policiais, viaturas estacionada na porta dos motéis para constranger os casais, estabelecimentos fechados e muita luta na Justiça levada adiante pela persistência dos “moteleiros”. Até que, em 30 de julho de 1970, o Estado de Minas (uma das fontes de pesquisa para os jornalistas), trouxe a manchete: “Motéis ganham briga na Justiça”, pondo fim à dura queda de braço.

Alarcon viveu por quase 20 anos sob liberdade vigiada. Em 1985, numa consulta à embaixada brasileira em La Paz, Bolívia, a pedido da Polícia Federal, descobriu-se que nunca existiu em qualquer tempo uma pessoa chamada Luiz Mário Villarroel Alarcon e que muito menos era um perseguido político. “O ‘João de Deus’ dos motéis morreu esquecido, em 8 de julho de 1998. Tinha 68 anos e morava no Bairro Rio Branco, vizinho aos motéis da Pampulha que tanto combateu”, destaca Murilo, numa comparação com o médium goiano João Teixeira de Faria, o João de Deus ou João de Abadiânia.

COSTUMES

O objetivo da obra, observa Murilo, é apresentar um amplo painel da evolução dos costumes do Brasil, a partir de fatos em torno dos motéis e de seus ancestrais, os chamados hotéis de alta rotatividade. “O primeiro deles, inaugurado em 1926, ainda resiste em pé, embora inativo: o Hotel Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ), onde, como dizia o jornalista e escritor Antonio Maria (1921-1964), era possível ‘amar sem castigo’”.





Em resumo, pode-se dizer que os motéis são “filhos dos hotéis suspeitos”. No início do “boom” dos motéis, na década de 1960, as pessoas pronunciavam a palavra à boca miúda, como se cada letra contivesse uma indecência. “O certo é que, ao longo do tempo, e depois de muita repressão às mulheres, elas puderam, no quarto de motel, se liberar sexualmente com o marido, longe das atribulações cotidianas, dos filhos, enfim, do ambiente doméstico”.

Incentivos fiscais na ditadura

Uma parte importante do livro “Os motéis e o poder – Da perseguição pelos agentes de segurança ao patrocínio pela ditadura militar”, de Ciça Guedes e Murilio Fiuza de Melo, se refere à ditadura militar no país (1964-1985). Os autores expõem “as contradições do discurso da ‘defesa da moral e dos bons costumes da família brasileira’, usado pelos militares para angariar o apoio de parte da sociedade brasileira ao regime”. Os autores apuraram que “apesar do discurso moralista e da mão de ferro para controlar as mudanças nos costumes, a ditadura militar financiou a construção e a consolidação dos motéis, emblemático espaço para a prática de sexo livre no país, que se espalharam pelo território a partir de 1968”.

Segundo eles, “a liberação de recursos públicos e os incentivos fiscais ocorreram nos governos mais repressivos do regime, dos generais Artur da Costa e Silva (1899-1969), que impôs o AI-5 (Ato Institucional), e Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), no qual a tortura de opositores se institucionalizou como prática de Estado.”





Em um dos capítulos, os autores escreveram que o dinheiro público jorrou para esses estabelecimentos inicialmente de forma involuntária. “O governo identificou o turismo, chamada de ‘indústria sem fumaça’, com grande potencial para alavancar o crescimento econômico do Brasil. Criou, então, em 1966, a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), desenhando um plano para dotar o país de infraestrutura hoteleira. A ideia era também incentivar a nascente indústria automobilística, que se instalara por aqui no início da gestão de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Os militares incluíram o modelo norte-americano do “motorist’s hotel” (hotel do motorista), de onde se origina a palavra motel, entre os meios de hospedagem que receberiam financiamentos e incentivos.”

Mas os planos foram atropelados pela revolução sexual, favorecida pelo surgimento da pílula anticoncepcional, e a queda no preço dos carros no país. “Como disse o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony (1926-2018), Deus criou a pílula e o automóvel, mas foi o diabo quem os juntou, permitindo aos empreendedores, principalmente imigrantes espanhóis e portugueses, fazerem fortuna com o sexo. Diferentemente de seus antecessores, os chamados ‘hotéis suspeitos’ ou de ‘alta rotatividade’, que também tinham forte presença de ibéricos entre seus donos, os motéis não serviam exclusivamente à prostituição. A mudança nos costumes permitia à nascente e progressivamente motorizada classe média urbana usufruir dos prazeres da mobilidade e do sexo.”

Entre 1968 e 1974, tais estabelecimentos nasceram e floresceram. “Os motéis se espalharam pelas maiores capitais e, depois, para as cidades de porte médio, financiados com recursos públicos graças à falta de fiscalização. No final das contas, a maioria dos motéis nem precisava de financiamento, porque foi um negócio muito bom, que explodiu em todo o país”.





Com base em entrevistas e extensa pesquisa, os autores revelam as relações íntimas entre militares e motéis. “Um dos exemplos é o do Motel Dunas, ainda em operação na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. A inauguração, numa noite de julho de 1973, contou com a presença do general João Baptista de Oliveira Figueiredo (1918-1999), então chefe do Gabinete Militar de Médici, que se tornaria, 12 anos depois, o último presidente da ditadura militar. Os filhos do general eram amigos do filho de um dos sócios do Dunas, e chegaram a ter negócios em comum.”

A história dos motéis também traz à tona um crime ocorrido no Rio em 1975, quando a atriz Leila Cravo (1953-2020) foi encontrada nua e inconsciente no asfalto da Avenida Niemeyer. Então com 22 anos, ela sobreviveu, e a polícia concluiu que foi uma tentativa de suicídio, apesar de todas as evidências levarem a um caso de violência contra a mulher.

“FAMÍLIA” E “BALADA”

De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), a capital tem 81 motéis em funcionamento, concentrados, em sua maioria, nas regiões Centro-Sul, Noroeste e Pampulha. O estabelecimento com data de abertura mais antiga – 26/09/1968 –, tem o nome oficial de Coimbra Hotel Ltda., no Centro. “Mas sua principal atividade que consta no cadastro é a de motel”, diz uma nota da PBH.





Se o famoso Green Park saiu de cena, continua em poder da empresa Maquiné o Forest Hills, no Anel Rodoviário, Bairro Sumaré, Região Noroeste. Os dois foram construídos – o primeiro em 1976, o segundo, em 1986 –  pelo empreendedor Décio Drumond (1930-2011) e fundador do Hotel Ouro Minas, que completa 25 anos em 2021.

Uma funcionária do Ouro Minas conta, em tom bem-humorado, que o “Green Park era o ‘motel das famílias”, pelo seu caráter de receber gerações e mais gerações, enquanto o Forest Hills, o da balada”. Com 35 anos no mercado, o Forest Hills tem uma marca comercial jovem. “Recebemos telefonemas de pais contando que frequentavam o Green Park. São muitas histórias.” A assessoria Villefort atacarejoinformou que a demolição do Green Park ocorreu entre o fim de 2020 e início deste ano, após a compra do imóvel em julho/agosto do ano passado. No terreno, será aberta “uma loja ampla, espaçosa e moderna”.

DEPOIMENTOS

Entrevistas foram concedidas ao Estado de Minas, com nomes fictícios

“Meu avô me contou que, na década de 1950, teve uma 'garçonnière', um pequeno apartamento para seus encontros amorosos. Eu, então com 23 anos, confidenciei que gostava de motel, de pegar meu fusquinha, a estrada, e esquecer da vida. Os tempos mudaram, e, hoje, não me incomodo de ver meu filho mais novo chegando com o namorado para dormir no seu quarto. Melhor do que ficarem na rua, expostos a assaltos. Mas os dois também gostam de motel, do clima de aventura. Cada um sabe de si – afinal, a questão não é o espaço, e sim o desejo”
Pedro, 60 anos, professor

“Quanto tempo não vou a um motel! Na primeira vez, era bem jovem. Foi tanta novidade que não dormi à noite toda naquela cama redonda. Depois, já casada, me apaixonei por um colega de trabalho e a nossa opção eram os motéis. Cada dia em um. Com ele, fui parar até numa espelunca do Centro de BH. Mas também já me diverti em muita banheira de hidromassagem. Era uma forma de sair da normalidade. Motel, pra mim, ainda é sexy e tem um quê de proibido”
Bárbara, 39 anos, autônoma

“No meu tempo de solteiro, ia muito aos motéis do trevo de Sabará. Confesso que já passei aperto. Uma época, estava saindo com uma mulher casada, e o marido, desconfiado, passou a vigiar. Uma tarde, ele nos seguiu com seu carro de cor berrante. Chegamos ao motel e notei que ele vinha bem atrás, por isso pedi ao porteiro que não o deixasse entrar para evitar confusão. E não é que ele conseguiu chegar ao quarto em que estávamos? Para sair do sufoco, contei com a colaboração da equipe do motel: assim que o marido entrou gritando, uma funcionária entrou no quarto, se deitou na cama e minha amante saiu rapidamente. Coisa de filme. Ele ficou na maior falta de graça. Enquanto isso, a mulher pegou um táxi e chegou em casa antes dele”
João, 45 anos, eletricista




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