Jornal Estado de Minas

PANDEMIA

Mais de 500 mil mortos pela COVID-19 e um país em busca de saídas

O Brasil superou, nesse sábado (19/6), a triste marca de 500 mil mortes pela COVID-19. Já são 500.800 vidas ceifadas. Cada uma delas representa familiares, pais e amigos que perderam um ente amado. De acordo com dados da Universidade Johns Hopkins, em 19 de junho, o país já ocupava o segundo lugar na lista mundial de vítimas da COVID-19, ficando atrás dos Estados Unidos, líderes, com 601.717, e à frente da Índia, que registrava 385.137 óbitos.





Em todo o mundo, até ontem, foram computadas 3.854.127 mortes; as vítimas brasileiras (498.499 para Hopkins, ainda aquém dos 500 mil) representavam 12,9% do total global. Em agosto de 2020, quando as 100 mil mortes bateram à porta, o pesadelo parecia ter chegado ao ápice; menos de um ano depois, porém, a tragédia se multiplicou por cinco.

O Estado de Minas ouviu especialistas de diversas áreas, como infectologistas e virologistas, para traçar um diagnóstico do que levou o Brasil a ter o segundo maior número de mortes por COVID-19 no mundo, além de projetar o que pode ser feito para nos preparar para futuras pandemias.

“É consensual que novas pandemias e epidemias vão acontecer. Isso é cada vez mais claro à medida que nossa sociedade tem um comportamento, de forma geral, cada vez mais extrativista em relação à natureza. Então, a tendência é de que populações humanas entrem em contato com patógenos vindo de regiões de florestas e áreas naturais com mais intensidade. Isso é um fato”, afirma o virologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Flávio Fonseca, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV).



O Brasil ainda está às voltas com o controle da doença, com uma vacinação ainda em ritmo lento e alta média móvel de casos. Apesar disso, além desta pandemia, é necessário se preparar para o futuro, conforme Flávio e outros especialistas ouvidos pelo EM alertam. Eles são unânimes ao dizer que esta não será a última ameaça mundial trazida pelos vírus.

GRAU DE COMOÇÃO

Os números, por si só, deveriam mostrar o quão devastadora é a pandemia, que nada tem de gripezinha. Mas para deixar isso mais claro, é possível recorrer a um dos maiores acidentes aéreos registrados na história: da Pan Am, no Aeroporto de Los Rodeos, em Tenerife, nas Ilhas Canárias, na Espanha. O avião, que seguia de Los Angeles, nos EUA, para Las Palmas em 27 de março de 1977, teve que desviar para Tenerife. Morreram 583 pessoas.

As tragédias aéreas costumam comover pelo número de vítimas feitas de uma só vez. Imagine, então, o grau de comoção que deveria gerar algo que cause o número de mortes que equivale a 858,7 acidentes de Tenerife. Esse é o comparativo que corresponde às mortes por COVID-19 no Brasil.



Diego Xavier, epidemiologista e pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), avalia que o Brasil tinha condições de enfrentar uma epidemia da magnitude da COVID-19.  Ele lembra que instituições como a Fiocruz, a Universidade de São Paulo (USP), outras faculdades e institutos tecnológicos dispunham de ferramentas para monitorar a infecção. Os pesquisadores, inclusive, alertaram em diversos momentos sobre a gravidade do que viria pela frente.

Para os especialistas, faltou uma coordenação nacional para enfrentar a doença – papel que deveria ter sido desempenhado pelo Ministério da Saúde. “Durante a pandemia, o que a gente viu foi uma tentativa de se isentar da responsabilidade. O governo federal transferiu o problema para o estado, que transferiu para o município. E o município para a população. A questão da coordenação foi o grande problema para a falta de orientação sobre o que deveria ser feito”, diz Xavier.

Colapso poderia ter sido evitado

Diego Xavier, epidemiologista e pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

“Se a gente tiver uma nova epidemia com coordenação, para que todo mundo siga uma estratégia – e ter um plano já é muito importante – com comunicação clara, recado único e orientação à população sobre o que está acontecendo e o que precisa ser feito, nosso sistema público de saúde tem todas as condições de passar por esse problema sem enfrentar a situação lamentável que atravessamos hoje. Ferramentas de monitoramento a gente tem.



(Com) a capilaridade do sistema público e o volume de pessoas trabalhando, conseguimos chegar ao fim do Amazonas para vacinar. A gente tem estrutura para enfrentar um problema do tamanho da COVID-19. O problema é que não soubemos usá-la. Temos um exército de agentes comunitários de saúde que poderiam estar testando e rastreando casos, evitando colapso nos hospitais. Não usamos isso. Temos sistema de monitoramento e alerta para gripe, dengue, malária e outras doenças, mas não o usamos de forma adequada.

Quando olhamos um estado entrando em colapso, conseguimos ver que isso aconteceria três ou quatro semanas antes. Mas, infelizmente, os gestores só tomaram a decisão de enfrentar a doença de forma mais enérgica quando se depararam com o colapso. Você não enfrenta uma epidemia tratando casos graves, mas evitando que casos aconteçam. A vacina veio para isso.”


Campanha de vacinação

Geraldo Cunha Cury, infectologista, epidemiologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

“Para combater a pandemia, existem dois mecanismos: as medidas não farmacológicas – uso da máscara, distanciamento social e higiene das mãos – e, na outra vertente, temos a questão das vacinas. O que tem que ser feito é o Ministério da Saúde fazer o papel de propagandear as medidas não farmacológicas como essenciais para não corrermos o risco de, em vez de 500 mil mortes, que tenhamos 800 mil ou 1 milhão de óbitos.



Estamos em uma campanha de vacinação em que não há vacinas. E não temos porque no ano passado o governo não contratou vacinas. É urgente que o governo federal as providencie. Essas duas coisas têm que andar juntas. Senão, vamos ter explosão de casos.

A UFMG está desenvolvendo uma vacina, mas com pouco apoio do governo federal. A Prefeitura de BH financiou uma parte. Mas isso é uma coisa para o final do ano que vem. É algo demorado. De imediato, tem que comprar as vacinas que existem. É preciso uma campanha de vacinação. Houve muitas fake news. A vacina pode dar efeitos colaterais? Sim. Às vezes dá febre, dor no corpo ou dor de cabeça. Mas o efeito colateral da não vacinação é a morte.

Para futuras epidemias, por outros vírus, a questão é tratar cientificamente o problema. E não fazer o que fizeram com a COVID-19. O que a ciência recomendava fazer não foi feito. Aí estamos onde estamos.”





Experiência e conhecimento disponíveis

Dirceu Greco, infectologista, professor da UFMG e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética

“A resposta inicial contra o HIV foi exemplar no país. (O vírus era) violento, díspar, homofóbico e com violência de gênero. Apesar disso, a resposta foi exemplar. Teve a participação de todos, com coordenação nacional importante. A experiência daquela época serviria como exemplo para a atual pandemia. Infelizmente, desta vez, temos um governo irresponsável que nunca levou a sério uma epidemia tão importante – e a negou. As experiências anteriores e conhecimentos estão disponíveis. Esta não é a primeira epidemia – e nem vai ser a última.

Devemos aproveitar algumas coisas positivas. Sem o Sistema Único de Saúde (SUS), a barbárie atual seria transformada em caos. Mesmo subfinanciado, o SUS tem segurado esse processo – como (na epidemia) de HIV/Aids, em que tudo foi pelo SUS. É importantíssimo ter um sistema de saúde público funcionando, adequado, que atinja todos, não tenha preconceitos e seja estruturalmente correto. Isso é o ponto principal para o enfrentamento de qualquer outra coisa que acontecer.

Cada pandemia que aparece não substitui outras doenças, mas vem para acrescentar. Quando sairmos desta, vamos voltar à situação pré-pandêmica, que tinha praticamente as mesmas coisas: um país díspar, cheio de desempregados e pessoas pobres, além de preconceito e violência contra pobres, negros e mulheres. A nova normalidade vai ter que encontrar um país diferente, que não tenha este governo. Não dá para continuar com essa incapacidade – ele (Bolsonaro) está sendo chamado de genocida não à toa.



A primeira estupidez foi acabar com o Mais Médicos. Tinha médico em todo canto. Atenção básica é o ponto principal. Parte importante das mais de 500 mil mortes aconteceu nos hospitais, com sofrimento e dificuldade de conversar com a família. Mas há os antecedentes: os sintomas, o acesso ao diagnóstico, o diagnóstico em si e o encaminhamento ao tratamento. Tem que haver financiamento correto e intenso do SUS – principalmente o programa Saúde da Família. O Brasil tem um ótimo processo de ter 60 mil ou 70 mil equipes de Saúde da Família. Você pode não só discutir sobre prevenção, mas diagnosticar precocemente e isolar casos. Isso foi, em certo sentido, perdido.”


Priorizar a ciência

Flávio Fonseca, virologista, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV)

“Parece que há uma ideia formada na cabeça de nossos gestores políticos de que ciência não é prioridade. Nos últimos anos, o Brasil não encara a ciência como pasta prioritária. O preço está pagando agora. Vivemos, em 2015 e 2016, a crise da zika. Naquela época, não era uma pandemia, mas um problema dos países tropicais – especificamente nas Américas, que a doença atingiu com maior força. Se não tomássemos ação, ninguém ia tomar. Ninguém ia fazer vacina para o Brasil comprar ou estudar o vírus da zika.

A ciência brasileira se debruçou sobre o problema, respondeu a diversas perguntas sobre o vírus, praticamente desconhecido para o mundo, gerou soluções e treinou pessoas. A gente teve a oportunidade de formar laboratórios, infraestrutura e pessoal qualificado para ficar para sempre com a gente. Isso era um patrimônio brasileiro que não foi aproveitado. A crise passou, o dinheiro sumiu e as pessoas treinadas em ambiente de ‘batismo de fogo’ foram embora do Brasil. Aqui não havia ambiente de estímulo, de contratação, geração e manutenção de laboratórios.



Com a crise da COVID-19, a gente reequipou laboratórios e remontou as equipes. Os pesquisadores que vão trabalhar na próxima pandemia estão sendo formados agora. O que vamos fazer com essa massa de gente que foi treinada? Vamos começar a dar importância à ciência e manter esse nível de fomento com mais intensidade?

Ou, quando acabar ou diminuir a crise da COVID-19, vamos fazer a mesma coisa que aconteceu com a zika? Acabou ou diminuiu o impacto da COVID, o dinheiro some, as pessoas treinadas são ignoradas e a gente perde, de novo, todos esses cérebros para o exterior? Espero que isso não aconteça.”

audima