Jornal Estado de Minas

NOVO CORONAVÍRUS

COVID-19: o risco como companheiro nas rotinas de trabalho


Sobreposição de máscaras, uso de escudo facial, cuidado com uniformes, higienização de consultório e outras medidas permitiram que a dentista Cláudia Leal de Souza, de 59 anos, trabalhasse por quase um ano sem se contaminar pela COVID-19. Contudo, há cerca de 10 dias ela sentiu a força da doença.



Teve 70% dos pulmões comprometidos e precisou se internar, fazendo uso de oxigênio por oito dias. “Fazia de tudo para evitar, mas a exposição é grande demais. A gente sempre lida com pacientes sem as máscaras, e as canetas (equipamentos de procedimentos orais) fazem a saliva voar pelo consultório todo. É nos aerossóis (gotículas exaladas pelas pessoas), que o vírus fica”, conta Cláudia.

O perigo descrito por ela faz da profissão uma das mais expostas à contaminação pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), segundo estudo feito conjuntamente por instituições de pesquisa ligadas à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A avaliação “Risco de Contágio por Ocupação no Brasil” mostra o quanto os trabalhadores de cada uma das ocupações tendem a se expor a doenças ou infecções nas suas atividades. A exposição é medida por escala que vai de 0 a 100. A pontuação de risco é mais baixa para profissionais que não têm necessariamente contato interpessoal, como a ocupação de um economista, aponta a pesquisa.



Os riscos e a necessidade de contato sobem ao máximo de 100 pontos para técnicos em saúde bucal e 98 para dentistas, que enfrentam máxima exposição, de acordo com o estudo.

O principal fator de perigo avaliado pelo estudo leva em conta as atividades de contato e proximidade com pessoas que possam estar infectadas. A escala vai de “distante de outras pessoas, quando se trabalha a mais de 30 metros dos outros, como no caso de um desenhista técnico”, que atinge sete pontos de risco. O mesmo ocorre inversamente com o conceito de emprego de “muita proximidade”, como o fazem os professores de dança, por exemplo.

Em outro eixo, se enquadram as ocupações da educação, com taxas bem altas para professores, principalmente dos níveis infantil e fundamental, em que há concentração de pessoas e tendência a um relaxamento natural com cuidados contra a infecção.

O trabalho também leva em conta a frequência de contato de cada ocupação com outras pessoas. O estudo foi liderado pelo pesquisador Yuri Lima, do Laboratório do Futuro (LabFuturo/UFRJ), que é coordenado pelo professor Jano Moreira de Souza.





Os riscos inerentes aos dentistas e técnicos em saúde bucal têm feito com que muitos profissionais se afastem do trabalho. “Há colegas que fecharam os consultórios totalmente e ainda aguardam ser imunizados. Tem também quem adote um esquema tão rebuscado de proteção, que o consultório parece uma bolha, um bloco cirúrgico.

Pessoas que tiram sapatos, vão de óculos e escudo facial, todo embalado, com duas luvas. Tudo isso aumentou o custo operacional, sem falar na inflação dos equipamentos. A caixa de luvas, que já custou R$ 19, variou até R$ 130”, aponta o presidente do Conselho Regional de Odontologia (CRO) de Minas Gerais, Raphael Castro Mota.

Ele estima que a cobertura vacinal dos dentistas chegue a 63%, mas alerta que é importante que os demais profissionais que trabalham juntos também sejam imunizados, como secretárias, porteiros e pessoal da faxina, que também se expõem no dia a dia.



“Tivemos poucas baixas, justamente porque os dentistas são muito bem preparados. Temos um conceito muito difundido de biopreparação e de biossegurança, o uso de equipamentos de segurança individual é comum e isso nos resguardou mais. Apesar de a fonte dos vírus ser exatamente a boca do paciente, que não pode ser tampada”, observa.

Preocupação está no ar dos consultórios

O momento mais crítico para o dentista, na avaliação do presidente do Conselho Regional de Odontologia (CRO) de Minas Gerais, Raphael Castro Mota, é o uso das canetas de alta rotação, que provocam a dispersão de gotículas de aerossóis dos pacientes. “Por isso, o risco de contaminação no consultório é tão grande. Isso nos obriga a ter um cuidado especial com a limpeza e a higienização dos locais de procedimentos.”

A dentista Cláudia Leal de Souza, de 59 anos, não sabe ao certo o momento em que se contaminou, mas já decidiu que só retorna ao trabalho depois da segunda dose da vacina e de fazer um exame que comprove que seu corpo tem os anticorpos contra a COVID-19.



“Sempre tive medo dessa doença. Quando me desparamentava (tirava os equipamentos de segurança), eu tomava todos os cuidados, porque o aerossol que carrega o vírus gruda na roupa. Usava uniforme por baixo do pijama cirúrgico e depois avental, com todo cuidado, mas mesmo assim não escapei”, conta a dentista.

No sétimo dia após testar positivo para a COVID-19, ela se sentiu mal e foi ao médico fazer gasometria e radiografia do pulmão. “Meu pulmão já estava 70% comprometido. Sentia muito cansaço, a saturação de oxigênio no meu sangue foi só baixando. Fiquei na sala vermelha do hospital esperando ser internada, porque não tinha vaga. Cheguei às 4h e só à meia-noite me internaram. Junto comigo estavam um senhor e uma moça de menos de 20 anos, que estava muito ruim e foi colocada no respirador. A mãe dela estava muito preocupada. Depois consegui ir para o quarto. Mas usava bala de oxigênio para tudo. Só de andar até o banheiro já me sentia cansada. Foram oito dias até ter alta. Até procurei saber se a menina tinha se salvado, mas não consegui”, relata a dentista.

Uma grande preocupação do CRO é quanto à defasagem da lista de profissionais do Ministério da Saúde, com 600 mil trabalhadores da área aptos a serem vacinados como prioritários.



“Essa listagem está defasada. E é preocupante, porque quando o ministério diz que 97% dos profissionais já receberam uma dose da vacina, na verdade esse percentual é menor. Estimamos que haja 1 milhão de trabalhadores. Só Montes Claros, por exemplo, tem 31 mil e lá estão estimados 14 mil. Em BH, a diferença é muito maior. O risco, a princípio, é de que esses profissionais expostos fiquem desassistidos”, ressalta o presidente do CRO.

Como foi feito o estudo

A análise de risco de contágio por ocupação feita pela UFRJ considera três métricas relacionadas aos empregos formais, com cruzamento dos dados de ocupação do Brasil e EUA: nível de exposição a doenças em cada atividade, proximidade física com as fontes de contaminação e necessidade de contato com outras pessoas. O estudo foi desenvolvido em parceria por organismos da UFRJ, entre eles o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), um dos maiores centros de ensino e pesquisa em engenharia da América Latina. O trabalho foi feito em conjunto com o LabFuturo, que prospecta cenários e projeta soluções para uma sociedade mais igualitária, participativa e sustentável. Outro parceiro foi o LABORe, que agrega conhecimento às soluções com base em metodologia científica para ajudar a melhorar a geração de empregos no Brasil.

audima