Jornal Estado de Minas

Entrevista/Annie Caroline Praça Arcanjo, 3º sargento do CBMG

'Primeira, mas não a última', aposta bombeira promovida por ato de bravura


Na mitologia cristã, os arcanjos são os principais anjos de Deus, responsáveis pelas missões mais importantes. Para seis pessoas resgatadas em Raposos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a definição não poderia ser mais verdadeira.



Em 24 de janeiro de 2020, durante as intensas chuvas que atingiram a cidade, elas estavam ilhadas no terraço de uma casa, em rua onde a enchente quase chegava ao nível dos cabos energizados, e foram salvas não por não um, mas dois arcanjos.

A principal responsável pelo salvamento foi a sargento Annie Caroline Praça Arcanjo, de 29 anos, que passou a ser a primeira mulher promovida por “ato de bravura” em 109 anos de história da corporação mineira. A ação, que colocou em risco a própria vida da militar, ainda contou com a ajuda do pai, capitão José Arcanjo, de 59, que entrou para a reserva em 2010.

Os dois cumpriram o juramento que fizeram ao ingressar na carreira, que diz: “Salvar! Mesmo com o sacrifício da própria vida”. E manter a promessa exige treinamento, altruísmo e muita coragem. Com esses requisitos é que Annie vai ter oficialmente, a partir de 25 de dezembro, o maior reconhecimento que um militar pode receber em função de uma ação exitosa e que, até aqui, só havia sido concedido aos homens. Mesmo de folga, ela enfrentou empecilhos da correnteza e resgatou as vítimas com vida, incluindo uma pessoa acamada e um cadeirante. A entrega do reconhecimento é tão singular que, em um universo aproximado de 6 mil integrantes, costumam ocorrer, em média, apenas duas promoções desse tipo por ano, segundo a instituição.



Em entrevista ao Estado de Minas, ela conta como o pai a inspirou quando decidiu ingressar na corporação, aos 18 anos. Em minoria no ambiente militar, ocupando apenas 10% das vagas, também está na pauta a importância da representatividade feminina. Antes cabo e agora 3º sargento, Annie Caroline defende que a mais importante promoção concedida por uma instituição militar deve ser cada vez mais ocupada por mulheres que se orgulham e se entregam por amor à profissão, assim como ela.

Como foi aquele 24 de janeiro de 2020 para você?
Por causa das chuvas, eu estava em alerta, mas não imaginei que poderia ficar numa situação tão caótica. Fui acionada pelos moradores. Como é uma cidade pequena, eles sabem quem sou, que meu pai é bombeiro e eu também. No dia, havia duas guarnições de bombeiros em Raposos, mas elas estavam ilhadas e não conseguiram passar com o barco. Estava muito perigoso. Tentamos passar com o barco, mas a correnteza estava muito forte. Foi o momento em que decidi agir. Meu pai entrou na água para ir ao encontro das vítimas e tentar acalmá-las. Enquanto isso, fiquei na outra ponta e verifiquei a situação, pedi a todos que saíssem das casas. Analisei a situação no local e pedi um colchão inflável pra gente encher e iniciar o resgate. Durou cerca de 40 minutos. Quase tive uma fadiga muscular porque fui e voltei com as vítimas. E todo o tempo em alerta.

Como você se sente hoje olhando para trás e se lembrando dessa cena de heroísmo?
Entrei com 18 anos (no Corpo de Bombeiros), fiz esse resgate com a mesma vontade de quando a gente entra. É como se estivesse no nosso sangue. O nosso intuito é sempre salvar, sempre cumprir a missão. Já me perguntaram se eu tive medo. Eu disse que não. Estava determinada, tinha preparação para isso. A gente tem que ter amor ao próximo. O sentimento que tive na hora era de salvar. O juramento do bombeiro é “vida e bens a salvar mesmo com o sacrifício da própria vida”. A gente está ali para a sociedade mesmo.





Apesar de a ação ter acontecido no início do ano, a divulgação da promoção só foi feita nesta semana e ainda será efetivada no dia 25. Como você recebeu essa notícia?
O ato de bravura é raro de acontecer. Fiquei até bem surpresa por isso. O fato de ter atuado e podido demonstrar a força da mulher e inúmeras outras coisas foi mais do que uma promoção para mim. Geralmente, o Corpo de Bombeiros faz cerimônias. Em tempos de pandemia, não vai acontecer este ano. Mas comemoração tem que ter, nem que seja com a família.



O que essa promoção significa para você?
Não consigo nem colocar em uma palavra só. Além de significar a representatividade, muito importante para as mulheres, significa humanidade entre todas. É como se a gente tivesse alguém mostrando para a gente que a humanidade tem um futuro bom. As pessoas têm um coração bom. E isso com muita fé, porque eu sempre me agarrei a Deus. Eu estava no momento e lugar certo. Se não estivesse de folga, em casa, a outra guarnição não chegaria àquelas pessoas.

Por que você escolheu ser bombeira?
Ser bombeiro significa muito mais que apenas ser bombeiro. É existir. É sentimento, dentro do coração, do corpo e da alma. Além de ter vários exemplos em que a gente consegue ajudar o próximo, é fazer com que o nosso ato seja exemplo do que Deus ensinou pra gente, é sobre ajudar o outro.





Você tem outras inspirações além do seu pai?
Minha inspiração é ele. Sempre tive uma influência muito forte. Estudei em colégio militar e durante toda a infância ficava muito no quartel, fazia aula de natação e colônia de férias.  Ele me incentivava direta e indiretamente no exemplo que sempre deu. Aos 18 anos, apesar de também querer ter uma carreira acadêmica, escolhi entrar para o Corpo de Bombeiros. Depois, me formei em engenharia civil, em 2016.

Atualmente, você trabalha no serviço administrativo, mas também tem experiência no operacional. De que você mais gosta na profissão?
Hoje, trabalho no Centro de Atividades Técnicas, no setor de prevenção de combate a incêndio urbano e pânico. Trabalho nisso porque é alinhado ao que fui formada. Entendo que muitas tragédias poderiam ser evitadas se houvesse sistemas de prevenção. Mas qualquer bombeiro tem o treinamento para atuar em situações de resgate. Temos que estar atentos e disponíveis para qualquer situação de resgate. Gosto bastante do operacional, mas também sou apaixonada pela prevenção.

Como é ser mulher no Corpo de Bombeiros, lugar majoritariamente composto por homens?
É um ambiente masculino, mas o próprio comando tem dado abertura para que sejamos tratadas igualitariamente. Estamos na luta para mudar esses 10% (quantidade de mulheres permitida nos concursos). Somos tratadas iguais, porém, como qualquer outro lugar, sempre tem alguma coisa que a gente tem que tentar enfrentar. Ser bombeira a cada dia é um desafio novo. Para mim é um orgulho, principalmente, abrir portas para muitas mulheres.





Que mensagem você deixa para outras mulheres que queiram entrar na carreira militar?
Esse ato de bravura me dá esperança de que todos os atos futuros vão ser reconhecidos. Fui a primeira e não serei a última. Tenho certeza de que elas são capazes de fazer muito mais do que eu. Toda e qualquer mulher é capaz de qualquer coisa. É só querer. E sigam firmes. Vocês vão encontrar alguns obstáculos e muitas pessoas que não vão acreditar em vocês. Nesses casos, mantenham-se firmes, a coluna ereta e a cabeça limpa.

O que diz a lei

O ato de bravura está descrito no Decreto Estadual 44.557, de 28 de junho de 2007, na seção IV, artigo 21: “A promoção por ato de bravura é decorrente da ação praticada pelo praça, de maneira consciente e voluntária, com evidente risco à vida e da qual não se tenha beneficiado o agente ou pessoa de seu parentesco até 4º grau, cujo mérito transcenda em valor, audácia e coragem quaisquer atitudes de natureza negativa porventura cometidas”

Palavra da corporação


“A atuação de Annie reverbera o pioneirismo feminino e a conquista das mulheres em espaços cada vez mais importantes no enfrentamento ao sexismo e outros desafios a serem superados nos diversos âmbitos sociais. Além disso, mostra também o merecido reconhecimento que a corporação presta aos seus integrantes, sem distinções de qualquer natureza e a necessária e urgente evolução que a sociedade vivencia objetivando ser mais justa e igualitária.”

audima