Jornal Estado de Minas

Aborto: hospitais não podem negar cumprimento de legislação, diz especialista

O caso da criança de dez anos que foi autorizada a interromper uma gravidez de 22 semanas após ser estuprada por um familiar, chamou a atenção no noticiário e correu o mundo. Após autorização judicial, a instituição hospitalar do Espírito Santo, onde a garota mora, se recusou a realizar o procedimento, e manifestações de grupos religiosos ou entidades contrárias ao aborto expuseram ainda mais a situação da jovem. 




 
Para a advogada especialista em direito de saúde, Luciana Dadalto, "o hospital universitário capixaba não deveria ter se negado a cumprir com a legislação e pode ser responsabilizado pelo constrangimento da criança". A menina precisou se deslocar para Pernambuco, onde a interrupção pode acontecer, com toda a assistência e equipamentos necessários para garantir o procedimento de forma a assegurar sua integridade física e de saúde.

No Brasil, a interrupção da gestação é proibida, exceto em casos de risco de morte para a mãe, se o bebê for anencéfalo ou em casos de gravidez oriunda de abuso sexual. A Lei que permite a realização do procedimento gratuito, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), nesses três casos existe desde 1940, mas ainda há violação do direito da mulher tanto no sistema judiciário, quanto no sistema de saúde, observa a advogada. 
 
Não há limite de semanas de gestação para realização a interrupção quando a vida da mulher está em risco ou quando o feto é anencéfalo. Já em caso de estupro, a lei determina que o aborto induzido seja realizado até a 20ª semana de gestação, ou 22ª, se feto pesar menos de 500 gramas, de acordo com o  artigo 128 do código penal brasileiro. 




 
"Como é um direito, ao se negar, o hospital descumpriu legislação, não possibilitou que a criança exercesse esse direito. O representante legal pode ajuizar ação de indenização", explica Dadalto. Ela diz que o problema é que no Brasil não há regulamentação específica de como funciona abortamento legal em hospitais, mas assegura que," em tese, todo hospital tem o dever de oferecer as condições necessárias e na prática, não é o que acontece."

"A terceira hipótese, da gravidez de feto anencéfalo, não é disposta em lei, mas foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Luciana Dadalto destaca a diferença entre a recusa de uma instituição de saúde e a de um profissional . "O médico ou a equipe não pode ser obrigado a qualquer procedimento previsto em lei. Ele tem o direito à objeção de consciência,  a não realizar ato por ser contra seu princípio moral ou religioso. Mas diante da negativa a instituição tem o dever de conseguir um profissional, ou equipe, que vá à unidade de saúde e realize o procedimento.
 
A advogada lembra que, por ser  o aborto ilegal, existem inúmeras clínicas clandestinas com procedimentos que resultam inúmeros efeitos colaterais. "Mas está praticando um crime do ponto de vista jurídico e a cliente, em caso de agravamento devido ao procedimento, não pode reivindicar nada dessa realização mal feita."




 
Dadalto destaca a importância do estado laico, quando se discute aborto, toca-se em pontos sensíveis, principalmente no que se refere a questão religiosa. "Mas precisamos lembrar que o Brasil é estado laico, protegido pela constituição e não podemos ter imposições de crenças, misturar normas religiosas, com legais. Quando vê a movimentação feita no caso dessa menina, de setores religiosos de que aborto é crime hediondo, é posição religiosa."

Quando o assunto é tratado a partir de convicções religiosas, corre-se o risco de desconstruir toda a história de luta pela separação de igreja e estado, que aconteceu a partir de 1890, há mais de um século. Ao se discutir questões relacionados à autonomia,  "temos que lembrar que garantir o direito de escolha de uma mulher não significa que toda as demais são obrigadas a s abortar, falamos de direito e não de imposição", lembra a especialista.

Luciana Dadalto ressalta ainda que em toda essa polêmica do caso "muito triste de abortamento tardio", somente aconteceu porque se descumpriu o artigo 227 da Constituição Federal, determinando que toda criança tem direito de ser protegida de qualquer tipo de violência. O Estado, a família e a sociedade têm do dever de protegê-la. "Qual foi a proteção que a família, o estado e a sociedade ofereceram a essa criança que teve uma gravidez somente descoberta após cinco meses de gestação?", questiona.




 
O caso da criança estuprada pelo tio e engravidou no Espírito Santo ganhou repercussão na semana passada depois que um coletivo feminista de mulheres tomou conhecimento do ocorrido. A pressão por parte da sociedade foi muito grande para que o aborto ocorresse de forma segura. 

A redatora,  profissional de comunicação estratégica e professora, Natacha Orestes, de 34 anos, faz parte do Sangra Coletiva e conta que petição da Campanha Gravidez Aos 10 Mata, nasceu de um sentimento de revolta. “Nós queríamos pressionar o Tribunal de Justiça do Espírito Santo a garantir o direito dessa garota.  O que nos revoltou é que o Tribunal de Justiça do ES não precisaria nem analisar. O direito ao aborto após estupro é um direito assegurado desde 1940, há mais de 80 anos. Não é necessária a judicialização do caso quando uma menina sofre um estupro e precisa do aborto”, disse. 656.370 pessoas apoiaram a petição e #gravidezaos10mata ficou entre as mais usadas no país durante o fim de semana.  

 
Constituição Federal de 1988

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)"

"Código Penal - Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

 (Com Larissa Ricci