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Fim do sonho

Brexit e intolerância no Reino Unido aceleram retorno de mineiros

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Homenagem ao mineiro Jean Charles na estação de metrô de Londres onde ele foi assassinado (foto: Ben Stansall/AFP %u2013 22/9/08)

Uma imigração com o sonho de melhorar as condições de vida e obter estabilidade financeira, mas que pode terminar com exploração trabalhista e desespero para retornar ao país de origem. Essa é a realidade de boa parte dos brasileiros que viajaram rumo ao Reino Unido e, meses depois, retornam por causa das dificuldades para se manter no exterior – principalmente depois do Brexit, como é chamada a saída da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte da União Europeia. O polêmico processo foi definido em 2016 a partir de um referendo, mas até hoje não saiu do papel. A previsão, segundo o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é que o passo rumo à saída deve ser dado em janeiro, o que pode complicar ainda mais a vida de quem está no país ilegalmente.

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Longas jornadas de trabalho e pouca remuneração: essa era a realidade de um mineiro de 31 anos, morador de Bom Despacho, na Região Centro-Oeste. “Estava na condição de trabalhador ilegal. Meu visto era de turista. Antigamente, era mais tranquilo, porque não tinha tanto fiscalização. Você pesquisava na internet vagas de emprego, porque a demanda lá é muito grande, inclusive com plaquinhas na frente dos estabelecimentos. Hoje, o governo está mais focado no combate à imigração ilegal”, explica o homem, que não quis se identificar.

Foram seis meses em Londres. Lá, passou por diferentes empregos, ocupando cargos em restaurantes, na construção civil e numa terceirizada de uma gigante de vendas on-line. Neste último posto, o homem pagava 190 libras (cerca de R$ 1 mil) para trabalhar em uma van e realizar entregas em nome da empresa. “Se a van precisasse de alguma manutenção, eles superfaturavam o conserto, que chegava a até 400 libras”, reclama. “Você acaba trabalhando para pessoas que têm consciência da sua condição, então o empregador que se propõe a fazer isso vai tirar lucro de você de alguma forma. Entendo isso, porque você, como empregador, está correndo riscos. Quem está legal ganha 14 libras por hora (R$ 74) e a gente ganhava 8, no máximo 9 libras por hora”, comenta o mineiro.

Ele retornou do país europeu em outubro deste ano, a partir do apoio da Casa do Brasil, ONG referência em assistência a brasileiros no Reino Unido. Desde 2015, mais de 1 mil pessoas voltaram dessa forma. O mineiro conta que procurou a embaixada brasileira, mas o órgão estava fechado. Contudo, no site oficial da embaixada viu a indicação da ONG e, graças a ela, conseguiu retornar ao Brasil voluntariamente para evitar a deportação. “A gente marca uma entrevista com o governo britânico. Nela, você tem de ser o mais sincero possível. Tive de falar que trabalhava ilegalmente. Eles deixaram eu escolher a data do meu voo e o aeroporto de destino. Você é tratado como passageiro mesmo, sem constrangimento algum”, explica o brasileiro. Além disso, a Casa do Brasil arca com valores de hospedagem, alimentação e traslado, caso o cidadão precise.

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Alerta aos imigrantes ilegais

A advogada Vitoria Nabas, que vive na capital britânica há quase duas décadas, é sócia do escritório de advocacia da Casa do Brasil. A organização não governamental presta assistência a imigrantes desde 2017. Ela explica que, desde 2016, quando 52% dos cidadãos britânicos disseram sim ao plebiscito do Brexit, aumentou o cerco dos serviços de imigração. As condições de trabalho também foram dificultadas. “Agora, é mais importante do que nunca divulgar àqueles que pretendem vir ao Reino Unido como turistas e tentar ficar, mesmo ilegalmente, em busca de uma vida melhor e ganhar dinheiro, que não devem fazê-lo, porque os empregos diminuíram e, com o Brexit, a tolerância à imigração também está diminuindo sensivelmente. Cidadãos europeus começaram a chegar à Inglaterra ocupando vagas de subempregos antes buscadas por brasileiros”, explicou.

Foi o que ocorreu com a autônoma de 41 anos que saiu de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, e foi para Londres em março de 2017. Depois de quase três anos, decidiu voltar de forma voluntária por meio do projeto. “Vim em busca de trabalho. Cheguei em um sábado e na segunda-feira já estava trabalhando. Fazia limpeza nas casas e atuava como motorista. Mas, decidi deixar o país. Ao longo do tempo, consegui enxergar que tudo não passava de uma ilusão. Você vem com tantas expectativas e, na verdade, você não passa de um escravo. Você vive o tempo todo fugindo de outros brasileiros com medo de te entregarem para a imigração”, lamentou a mulher. Foi por meio de amigas que ela conheceu o projeto Casa do Brasil. “Procurei o projeto e elas foram bem atenciosas. Não tive qualquer insegurança, tive certeza do que queria”, acrescentou. Ela desembarcará no Brasil ainda hoje.

Vida de incerteza e medo

A Casa do Brasil, organização não governamental que é referência em assistência a brasileiros que vivem em países no Reino Unido, tem se dedicado a combater um problema recorrente para quem entra ou tenta viajar ilegalmente: os coiotes. Essas pessoas, responsáveis por arranjar maneiras ilegais de entrar nos países, têm histórico de enganar e ameaçar os brasileiros. Qualquer cidadão brasileiro em situação irregular – morando com o visto de turista– pode buscar ajuda na casa. O programa é gratuito e auxilia até mesmo com passagens aéreas para o Brasil e auxílio até a data da viagem. “Ninguém é forçado a nada. Se a pessoa mudar de ideia, pode fazê-lo”, completou a advogada da ONG, Vitoria Nabas.

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Mas para quem é preso pela imigração, o retorno não é tão tranquilo, como relata um mineiro de 30 anos, natural de Bom Despacho. Ele trabalhava em um restaurante internacional e foi detido pela fiscalização em Londres. “Me mandaram para um hotel e depois para o aeroporto”, recorda. Segundo o mineiro, quem é pego em trabalho ilegal não tem direito a escolher o aeroporto de destino e deixa a Europa com a roupa do corpo. “Ele só pode pegar os pertences pessoais se alguém levá-los pra ele no aeroporto”, comenta.

Ele, que trabalhava no Brasil como encarregado de obras, embarcou para Londres em agosto do ano passado. Ele conta que com a crise no setor da construção civil, ele ficou desempregado e passou por dificuldades para sustentar a filha de 7 anos. Lá, ele ficou por um ano até ser deportado. “Trabalhei em um restaurante. Entrei de ajudante de cozinha e fui subindo de cargo até me tornar chefe. Eu ganhava 12 libras por hora trabalhada, sendo que trabalhava 11 horas por dia”, explicou. Com esse valor, a despesa mensal era paga e, ainda, sobravam 1,3 mil ou 1,5 mil libras por mês, que eram enviadas ao Brasil. Não opinião dele, a fiscalização aumentou muito após a entrada do novo primeiro-ministro, Boris Johnson.

“É muito burocrático se regularizar no país, é muito caro pra quem não tem descendência. A maioria que consegue tem descendência de outro país da Europa. Para conseguir documentação inglesa, somente se tiver ascendência comprovada, ser casado com inglês/inglesa, comprovar estada durante 15 anos no país e arcar com um custo muito alto”, explicou. Ele foi deportado porque estava no país com visto de turista, mas estava trabalhando. Ele conta que desde o início foi para lá com a intenção de trabalhar e conseguir juntar um dinheiro para voltar para o Brasil e adquirir a casa própria e abrir um negócio. “Fiquei extremamente frustrado. Tinha planos de permanecer no mínimo mais 3 anos lá para conseguir os valores que calculei para realizar meus planos no Brasil. A vida aqui está difícil com a falta de trabalho e tudo muito caro: moradia, água, luz, alimentação...”, contou ele.

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Além de ser deportado, ele conta que foi roubado e alerta sobre aproveitadores no exterior. “Há uma grande quantidade de brasileiros com documentação – alguns compram na Itália – que se aproveitam, exploram e até roubam brasileiros que estão lá ilegais”, denunciou. Ele conta que foi roubado por uma landlord (pessoa que aluga um imóvel para terceiros), que não reembolsou o valor do depósito do aluguel do quarto. “Recomendo a qualquer um que queira migrar pra qualquer país que tome muito cuidado com oportunistas e aproveitadores”, disse. Agora, ele sonha em se regularizar e voltar para o país. O homem contou que está usando o dinheiro que juntou para investir em renda fixa e na bolsa de valores. “E estou correndo atrás de documentos para voltar para a Europa. Não quero migrar ilegalmente de novo.”

Vida interrompida pela violência

Protesto contrário à saída do Reino Unido da União Europeia: onda de desemprego e de xenofobia preocupa principalmente os imigrantes (foto: JUSTIN TALLIS/afp)
Ao embarcar pela primeira vez em um avião para seguir rumo a Londres, Jean Charles de Menezes tinha 24 anos e levava na mochila um projeto grandioso: trabalhar e juntar na capital da Inglaterra dinheiro que não imaginava ser capaz de ganhar no Brasil, para ajudar a família. Com o resultado de seu trabalho, ele voltou ao país e levou os primos para atuar também no exterior. Mas, três anos depois, o sonho foi interrompido de forma covarde e violenta.

O mineiro Jean Charles foi assassinado aos 27 anos por policiais britânicos com oito tiros disparados à queima-roupa, em um vagão do metrô londrino, em 22 de julho de 2005. O jovem foi confundido com o terrorista etíope Omar Hussei – naquela que ficou conhecida como uma das mais desastrosas operações policiais da história da polícia inglesa, até então celebrada como a mais eficiente do mundo. A família do brasileiro sempre questionou o tratamento judicial do caso, porque nenhum policial foi alvo de procedimentos penais individuais, já que o Ministério Público considerou que não havia provas suficientes para processá-los.

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