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Sem vacinar cães e gatos, saúde dá brecha para a ameaça de mais um vírus 'domado'

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Minas Gerais sofre, neste ano, com o ressurgimento do sarampo, que depois de décadas volta a assombrar o Brasil. Enquanto isso, outra doença, que não é diagnosticada em sua forma humana há mais de 30 anos no estado, encara um cenário favorável para voltar a preocupar: a raiva, quase sempre fatal. Historicamente realizada em setembro, a campanha de vacinação em cães e gatos – principais transmissores no ambiente urbano – não ocorreu neste ano, em Belo Horizonte e em boa parte das cidades mineiras. O motivo é a crise pela qual passa o processo de produção de soros e algumas vacinas no país.



Com três dos quatro centros de fabricação de imunizantes contra a raiva – e também contra picadas de escorpiões e cobras do gênero Bothrops – cuja produção está parada para adequações às normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as 27 unidades federativas da União dependem, unicamente, do Instituto Butantan, instalado em São Paulo. Na capital mineira, por exemplo, só são vacinados “cães que apresentam maior risco de contaminação”, segundo a Saúde municipal.

Diante da dificuldade, o Ministério da Saúde só enviou doses suficientes para a campanha nos municípios que tiveram confirmação de casos de raiva em cães ou gatos com variante canina dos tipos 1, 2 ou de canídeo silvestre. Em Minas, números da Saúde estadual confirmam que apenas parte do total necessário para as campanhas nos 853 municípios foi enviada pelo governo federal nos últimos meses. As prefeituras foram comunicadas sobre a situação.

Em condições normais, o Brasil teria quatro centros produtores desses soros e vacinas: além do Instituto Butantan (de São Paulo, o único ativo), o Instituto Vital Brasil (IVB – Rio de Janeiro), o Centro de Produção e Pesquisa de Imunobiológicos (CPPI – Paraná) e a Fundação Ezequiel Dias (Funed), instalada em Belo Horizonte. Na unidade mineira, as obras estão mais avançadas do que na fluminense e na paranaense. “Todas as adequações em infraestrutura física da atual planta de produção de soros foram devidamente concluídas. Todos os sistemas foram instalados e concluídos, inclusive o de pré-tratamento, geração, armazenamento e distribuição de água para injetáveis. Estamos, agora, executando a qualificação de desempenho desse sistema”, afirma o presidente da fundação, Maurício Abreu.



Segundo ele, vencida essa etapa a próxima é uma “simulação das operações assépticas de envase”, ação que tem como objetivo certificar que os operadores da área estão seguindo os procedimentos corretos e verificar o cumprimento dos requisitos da Anvisa. “Os processos são exigência dos órgãos reguladores para as inspeções, com vistas à certificação da área em boas práticas de fabricação”, garante o presidente da Funed.

Mas, se no centro mineiro a solução para o problema está mais adiantada, no Rio de Janeiro e no Paraná parece ainda longe de chegar. O Instituto Vital Brasil, vinculado ao governo fluminense, iniciou o processo licitatório para atender às exigências da Anvisa. Já o Centro de Produção e Pesquisa de Imunobiológicos, ligado à Secretaria de Saúde do Paraná, firmou contrato com os governos federal e do estado para garantir repasses para a construção da nova fábrica de soros. Os investimentos giram em torno de R$ 108 milhões e a obra tem previsão de término apenas para 2023.

A logística dos soros é simples: eles são produzidos nos centros de referência e repassados ao Ministério da Saúde. A pasta do governo federal repassa o material para o Instituto Nacional de Controle de Qualidade e Saúde (INCQS/Fiocruz), que aprova ou não o produto quanto ao padrão de qualidade. Depois, os soros vão para as secretarias estaduais de Saúde. A quantidade para cada estado é definida de acordo com parâmetros técnicos, como o número de acidentes com animais ocorridos e notificados no ano anterior. Cabe aos órgãos estaduais repassar as substâncias aos municípios.



Em nota, o Ministério da Saúde informou que, em 2019, foram enviadas mais de 10 milhões de doses para todo país, sendo 2,5 milhões para o estado de Minas Gerais. A pasta distribui vacinas para os estados, cabendo a cada um fazer a distribuição a seus municípios.


Picadas mais perigosas

As limitações de produção de soros também deixa a população desguarnecida quanto aos ataques de animais peçonhentos. Minas Gerais convive com dificuldades de estoque de soros antibotrópicos (usado em acidentes com cobras como jararacas, jararacuçus e urutus-cruzeiro) e antiescorpiônicos. Com isso, a Secretaria de Estado da Saúde concentra o que tem de imunizantes nas cidades-polo, justamente pelo atraso nas entregas do governo federal.

O problema contribuiu, inclusive, para a morte do garoto L. G. P., de 7 anos, em Poço Fundo, na Região Sul do estado. Ele foi picado por escorpião na pequena cidade de aproximadamente 16 mil habitantes e precisou ser levado para Alfenas, na mesma região, porque era o município mais próximo com estoque de soro antiescorpiônico. O menino ficou internado entre 28 de agosto e 2 de setembro no Hospital Alzira Velano, mas não resistiu.



De acordo com a assessoria do hospital de Alfenas, a criança chegou em estado gravíssimo. Recebeu o soro antiescorpiônico horas depois de ser picado, na madrugada do dia 29, mas sofreu uma parada cardiorrespiratória, consequência de um edema pulmonar causado pelo veneno. A Saúde estadual informou que o protocolo de deslocar o estoque de soros para cidades maiores é adotado por causa dos problemas de produção no país.

Situação semelhante aconteceu na Região Norte do estado. G. G. P, de 3, perdeu a vida depois de ser picado por um escorpião em Bocaiuva. Ele foi levado para o Hospital Universitário Clemente de Faria (HUCF), em Montes Claros, local que estocava o soro na região. Referência no atendimento a vítimas de animais peçonhentos na região, a unidade médica informou que, de janeiro a agosto deste ano, recebeu 1.792 casos de pessoas picadas por escorpiões, quantidade 2,8% superior ao número de casos no mesmo período de 2018.

Somente nos primeiros nove dias de setembro, o HUCF atendeu a 64 vítimas de ataques do aracnídeo. O caso de Bocaiuva foi a terceira morte de criança causada por escorpião no Norte de Minas em menos de um ano. Em dezembro do ano passado, um menino, natural de Várzea da Palma, vítima de picada, não resistiu após dar entrada no HUCF. Em janeiro deste ano, a unidade hospitalar registrou a morte de um menino de 12 anos, procedente de Porteirinha. Em nota, o HUCF informou que foram adotados “todos os procedimentos e cuidados médicos necessários para o tratamento” dos casos.