Jornal Estado de Minas

VICIADOS EM ÁLCOOL

Herdeiros da dependência: alcoolismo dos pais multiplica riscos dos filhos

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“Já fiquei triste porque meu pai teve muitas oportunidades, mas não quis parar de beber. É possível mudar se a pessoa tiver foco, por mais que o vício e a doença sejam fortes. Doía muito. Ultimamente, não dói mais.” As palavras são de uma menina que durante seus 14 anos de existência viveu na pele experiências cujas cicatrizes só o tempo será capaz de apagar. A fala é objetiva e a firmeza das palavras surpreendem, ao mesmo tempo em que denunciam a fragilidade de quem até pouco tempo era apenas uma criança já com marcas tão profundas.


Carolina* se fortalece com ajuda terapêutica e o amparo do amor para fugir de uma estatística que é a prova de como o álcool faz muito mais vítimas do que seu dependente exclusivamente. Quem tem histórico familiar de alcoolismo tem 70% a mais de chance de desenvolver dependência na comparação com a população em geral. “A dependência pode ser desenvolvida em qualquer idade e isso tem como causa vários fatores biológicos. A criança tem menos capacidade de autocontrole, por isso, não se poderia beber antes dos 18 anos. Ela deve ser protegida”, afirma o psiquiatra Guilherme Rolim Freire Figueiredo, titular da Associação Mineira de Psiquiatria, coordenador no Instituto Raul Soares (Rede Fhemig) e sócio da Clínica Mangabeiras.

No caso de Carolina, um longo histórico familiar pesa sobre sua vida. A avó materna era alcoólatra e morreu em decorrência disso. Mais próximo está o pai, que a fez protagonizar cenas que a memória tenta bloquear, como a vez em que a mãe, para proteger os nove filhos, fugiu com eles para debaixo de um viaduto. Ou, ainda, de quando o pai tentou fugir com ela. “Minha mãe chamou a polícia e me lembro de ter ficado bastante assustada”, conta. “Onde tem álcool tem violência, não só física, mas também psicológica.”
 
Bebês em CTI neonatal: síndrome alcoólica fetal é a mais trágica das consequências do uso de bebidas etílicas por gestantes (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)

Há alguns anos, a menina vive com a mãe adotiva, uma antiga vizinha, apesar de manter contato com a mãe biológica e os irmãos. A cozinheira, de 46 anos, conseguiu no ano passado a guarda definitiva. “O álcool toma a pessoa por algo emocional e a prende até não ter mais como sair”, diz Carolina. Além das experiências pessoais, frequentar um grupo de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade numa comunidade terapêutica a ajuda compreender a situação e a não querer entrar em algo que sabe ser perigoso. “Não quero e não vou seguir. Tenho certeza de que isso é traumatizante para minha mãe, que viveu a maior parte do problema. Seguir o mesmo passo não é solução.”


Na visão da garota, álcool é refúgio encontrado por muitos para aliviar as dores da vida. “Toda dor é curável e bebida não é a melhor solução. É bem ruim, destrói as famílias”, afirma. Carolina quer ser psicóloga de hospital, para ajudar, assim como ela, quem precisa de palavras para reconduzir a caminhada. E para isso, conta com o apoio da mãe adotiva: “O amor que sinto por ela é incondicional”.

Prevenção


Assim como Carolina, outras crianças e jovens de até 21 anos são atendidos na Terra da Sobriedade, comunidade terapêutica localizada em Venda Nova, em Belo Horizonte, por meio do Meninos da Terra, um programa de prevenção para vítimas do tráfico e do uso de tabaco, álcool e outras drogas, e de suas consequências, tais como violência, negligência e abusos. A ideia é cuidar de quem tão cedo apresenta comprometimento em seu desenvolvimento físico, moral, psicológico, escolar e social.

Sorte diferente teve o jovem Paulo*, de 24 anos. Ele é filho de alcoólatra e o mesmo problema recaiu sobre dois irmãos. O rapaz conta que começou a misturar bebida no suco aos 8 anos e, aos 10, já usava a bebida alcoólica pura. Aos 15, saía para as festas e ficava largado no meio do mato, pelos cantos, e voltava só no dia seguinte. Contava com a ajuda de amigos que guardavam seus pertences para que nada lhe fosse roubado. “Achava que ia dar conta de parar, mas tudo o que conseguia era me afundar ainda mais. Chegou um momento em que tive de pedir ajuda”, relata. *Nomes fictícios

Efeitos em série desde a gestação


A chance de ter um filho alcoólatra ganha ainda mais destaque quando o consumo da bebida se dá numa fase crucial da vida: a gestação. Segundo a Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, entre todas as substâncias nocivas, o uso de álcool é o principal problema entre grávidas, à frente de tabaco, abuso de medicação e, por último, drogas ilícitas. De acordo com a Sociedade Mineira de Pediatria (SMP), estudos feitos no Brasil estimam uma frequência de consumo de álcool em torno de 10% a 40% entre as gestantes. A imprecisão dos dados se deve à tendência de as mulheres omitirem ou negarem o consumo durante o tempo em que carregam o bebê no ventre. Consequências ultrapassam esse período, com reflexos pra toda a vida.


O serviço público também não tem informações oficiais, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde. O coordenador de Saúde Mental da pasta, Fernando Siqueira, relata a lida diária com gestantes que fazem uso abusivo de álcool e que têm quadro classificado como dependência. “O fato é ignorado pelas pessoas que fazem pré-natal, tanto enfermeiras quanto médicos da saúde da família, que se esquecem de perguntar sobre uso de álcool e outras drogas. Profissionais de saúde têm de ficar atentos e fazer esses questionamentos dirigidos sobre a bebida”, cobra.

Siqueira lembra que o uso abusivo deve ser identificado antes mesmo da gravidez. Durante a gestação, os profissionais de saúde devem orientar as mães sobre o fato de o álcool não ser indicado em quantidade alguma também no período da amamentação. “Perguntas dirigidas podem identificar se há o problema na gravidez. Se sim, é necessário fazer intervenção para reduzir o dano causado, como síndrome alcoólica fetal e problemas relacionados ao bebê”, afirma. Com as gestantes, o tratamento é feito com psicoterapia, retirada gradual da substância e, às vezes, com auxílio de alguma medicação para reduzir os sintomas de abstinência.

Os efeitos do álcool sobre o feto são inúmeros e persistem depois do nascimento, acompanhando o indivíduo durante toda a sua vida. São relatados maior incidência de aborto, malformações congênitas, deficiência de crescimento e retardo mental. A bebida pode ainda causar redução de peso do bebê ao nascer, pré-eclâmpsia, prematuridade, retardo do desenvolvimento neuro- psicomotor, transtornos mentais ao nascer ou na fase adulta. A mais trágica das consequências, no entanto, é a síndrome alcoólica fetal (SAF), que se manifesta por alterações físicas, mentais, comportamentais e de aprendizado.


“Há uma relação entre a quantidade de álcool ingerida e o aparecimento de sinais e sintomas mais ou menos graves, ou seja, quanto mais álcool a grávida consome, maior a probabilidade de ocorrência do quadro completo da SAF. A síndrome leva a malformações faciais características, porém, o mais importante são os danos cerebrais”, explica a vice-presidente do Departamento Científico de Neonatologia da SMP, Erika Lima Dolabella Teixeira da Costa.

Ela acrescenta que uma série de problemas podem surgir ao longo da vida: retardo mental, dificuldade de aprendizado, problemas de saúde mental, comportamento sexual inadequado, incapacidade de viver de forma independente, interrupção da escola, problemas com o emprego, problemas com álcool e drogas. Nos portadores do espectro de desordens fetais alcoólicas, a frequência de problemas com álcool e drogas alcança níveis superiores a 50% nos indivíduos do sexo masculino e 70% nos indivíduos do sexo feminino.
 
 

Três perguntas para


Erika Lima Dolabella Teixeira da Costa
Vice-presidente do Departamento Científico de Neonatologia da Sociedade Mineira de Pediatria

Um gole de álcool num feto corresponde a qual efeito num adulto?
Não se sabe a quantidade de álcool que é lesiva ao desenvolvimento embrionário/fetal. Além disso, a mesma quantidade de álcool tem efeito diferente em cada pessoa. No caso de feto, isso é determinado por questões genéticas da mãe e do feto.



A mulher descobre a gravidez. Ela tem que parar imediatamente ou até certo tempo o álcool não faz mal?
A ingestão alcoólica deve ser interrompida assim que é descoberta a gravidez. Preferencialmente, deve-se parar de beber antes de engravidar. O álcool causa efeitos deletérios ao feto em todas as fases da gestação. Não há um nível seguro de consumo de álcool durante a gravidez. A quantidade lesiva ao desenvolvimento fetal não é conhecida.

No caso da mulher que ingeriu bebida alcoólica sem saber que estava grávida. O que fazer?
Não há tratamento para impedir ou reverter os efeitos do álcool sobre o feto. A exposição crônica à substância, entretanto, agrava e aumenta as chances de a criança nascer com problemas ou desenvolvê-los posteriormente. A mulher deve interromper completamente o uso de álcool assim que descobrir a gravidez.

Efeitos nocivos em série


Desde domingo, os efeitos do uso abusivo do álcool são temas de série de reportagens do Estado de Minas, que termina nesta edição. A primeira delas mostrou que o consumo de bebidas etílicas mata 3 milhões de pessoas por ano no mundo, mais do que o crack, e o longo caminho enfrentado por quem precisa e quer se livrar do alcoolismo. Ontem, o enfoque foi a codependência: a doença silenciosa que afeta os entes mais próximos dos viciados e a onda de violência provocada pela substância.