Jornal Estado de Minas

Minas Gerais teve 622 feminicídios nos últimos quatro anos

- Foto: Arte/Soraia Piva

O ataque brutal cometido por um homem de 39 anos, que terminou com a ex-namorada dele e outras três pessoas mortas em Paracatu, no Noroeste de Minas, chama novamente a atenção para um tipo de crime que resiste em recuar no estado. A Polícia Civil ainda investiga os motivos que levaram Rudson Aragão Guimarães a matar primeiro Heloísa Vieira Andrade, de 59, com quem já havia se relacionado, antes de assassinar a tiros três pessoas dentro de uma igreja da cidade. Um dos objetivos da investigação é comprovar se o ataque à primeira vítima tem ligação com o relacionamento anterior, o que enquadraria o caso na categoria de feminicídio. Seria um número a mais em um crime que experimenta números aterradores em Minas. Somados os casos de março de 2015, quando entrou em vigor a lei que tipificou esse tipo de crime, até o mês passado (o último com dados de 2019 consolidados), nada menos que 1.772 mulheres foram vítimas de ódio assassino por parte de namorados, maridos, companheiros e ex em território mineiro. Dessas, 622 perderam a vida no período. É como se seis aviões modelo Embraer-190 – com capacidade para cerca de 100 viajantes – tivessem caído em Minas nos últimos quatro anos, lotados de passageiras, sem deixar sobreviventes.

Em 2016, primeiro ano em que vigorou pelos 12 meses a nova lei (sancionada em março de 2015), foram 142 casos. No ano seguinte, o total subiu para 156 e em 2018 chegou a 160 registros, aumento de 12,6% em relação a dois anos antes.
Neste ano são 42 ocorrências até abril, o que significa média mensal de 10,5 casos, uma queda em relação aos números mensais de anos anteriores. De toda forma, os dados seguem alarmantes, agravados pela violência dos crimes mais recentes. E autoridades estão seguras de que a principal forma de combater os ataques é denunciar as primeiras agressões sofridas pela mulher, antes que seja tarde demais.

Essa é a avaliação tanto da Polícia Civil quanto da Polícia Militar, e a estatística ajuda a entender melhor esse quadro. De acordo com a Polícia Civil, dos 52 casos de feminicídio registrados especificamente em Belo Horizonte de março de 2015, quando a lei passou a valer, a abril deste ano, em apenas um deles havia medida protetiva solicitada contra o assassino. A PMr também tem números que ajudam a entender a necessidade de denunciar as agressões como forma de quebrar o ciclo da violência que pode terminar de forma trágica. Segundo a corporação, de janeiro de 2018 a abril de 2019, 3.660 famílias foram visitadas pela Companhia Independente de Prevenção à Violência Doméstica de BH. De todos esses casos, nenhuma das mulheres foi vítima de feminicídio.

Para a delegada Ingrid Estevam Miranda, coordenadora do Núcleo Especializado de Investigação de Feminicídio da Polícia Civil, criado este mês com o objetivo de agilizar e tornar mais eficientes as apurações desse crime em Belo Horizonte, o histórico dos casos demonstra que o assassinato da mulher não é um fato isolado.
“Quando a gente vai fazer alguma oitiva, ainda que não tenha registro, a gente conversa com os familiares e ouve que o relacionamento era abusivo, que tinha violência, mas a mulher não denunciava. Ou porque tem filho ou por outras razões. Por isso, temos que conscientizar as mulheres de que o pedido de ajuda é uma prevenção para que ela não seja vítima”, afirma.



O núcleo da Polícia Civil conta com a delegada Ingrid Estevam como coordenadora e tem ainda uma escrivã e três investigadores. O primeiro objetivo é se concentrar em 100% dos casos de feminicídio, para tornar mais ágeis as identificações e prisões dos autores. Todo caso de feminicídio na capital terá deslocamento dessa equipe de forma imediata. Um segundo objetivo é usar as investigações mais especializadas para descobrir meios que possam levar à prevenção. “Queremos extrair elementos para atualizar o protocolo de prevenção, porque existem indícios de que, quando o autor é o companheiro ou está no âmbito familiar, ele vai demonstrando ao longo do período de violência que pode vir a matar. Então queremos identificar esse momento, pois ele emite sinal várias vezes de que pode cometer assassinato.
Precisamos catalogar isso para achar uma forma de prevenir, já que o objetivo é que não ocorra feminicídio”, afirma a delegada.


‘A denúncia é imprescindível’


A major Cleide Barcelos dos Reis Rodrigues, comandante da Companhia de Polícia Militar Independente de Prevenção à Violência Doméstica de BH, alerta para a necessidade de as vítimas desse tipo de crime não se calarem desde os primeiros episódios. “A denúncia é imprescindível, pois proporciona à rede de proteção a possibilidade de adotar medidas que possam fazer com que agressões não evoluam para algo mais grave”, afirma a militar. “Os estudos comprovam que a questão da violência é progressiva. Temos comportamentos que estão diretamente ligados à violência e são socialmente tolerados. As vítimas acabam não percebendo e é algo que ataca a autoestima delas. Então, a violência vai ficando cada vez mais grave até que resulta em um caso extremo”, acrescenta.

Ainda segundo Cleide Barcelos, houve um caso em que uma vítima de agressão foi procurada pela unidade especializada da PM, mas ela não quis intervenção da rede de proteção e avaliou que poderia resolver com o companheiro aquela situação. Em março deste ano foi assassinada pelo ex-marido no Bairro Jardim Europa, na Região de Venda Nova, em BH, segundo a PM.

Ainda de acordo com a comandante da Companhia de Prevenção à Violência Doméstica, quando a equipe de – homens procuram o agressor e as mulheres as vítimas – visita uma família com histórico de violência doméstica, é apresentada uma rede de proteção que inclui várias opções. Uma delas é o Centro de Apoio à Mulher Benvinda, um serviço da Prefeitura de BH voltado para interromper o ciclo de violência. Entre as atividades desenvolvidas estão atendimento psicossocial, atividades em grupo e encaminhamentos ao restante da rede.

A vítima de agressão pode ser orientada também a procurar a Delegacia de Mulheres da Polícia Civil, caso seja necessário solicitar à Justiça medida protetiva contra o agressor, a Defensoria Pública, que tem núcleo especializado para esse tipo de atendimento, o Ministério Público, se já existir um processo judicial pela violência contra o agressor, entre outras opções. Existe até a possibilidade de as mulheres serem encaminhadas para a Casa Sempre Viva, abrigo mantido pelo Consórcio de Promoção da Cidadania Mulheres das Gerais para casos extremos de violência, como a ameaça de morte grave, por exemplo..