Um calote de R$ 3,3 milhões e uma dívida social difícil de mensurar. Esse é o saldo do acordo assinado pela Fundação Renova, no ano passado, para bancar o programa de tempo integral de 25 escolas de Mariana, na Região Central de Minas, e até hoje jamais cumprido. A consequência é o prejuízo a cerca de 3 mil alunos dos ensinos infantil e fundamental e a suas famílias. A prefeitura da cidade, cujas receitas sofreram um duro baque depois do rompimento, há 3 anos e meio, da Barragem de Fundão, operada pela Samarco no distrito de Bento Rodrigues, decidiu apertar ainda mais o cinto para bancar a escola integral. E vai buscar na Justiça o ressarcimento do que gastar e do que deixou de receber.
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Mariana, 3 anos e meio depois: nenhuma casa pronta no novo BentoConheça a história do soldador que escapou da lama em Mariana e morreu em BrumadinhoPunição por tragédia de Mariana recua no Brasil avança no Reino UnidoInformação sobre liberação do consumo do pescado no Rio Doce é contestada Diretor-presidente da Renova é alvo de ação por danos ambientais no AmazonasO prefeito de Mariana, Duarte Júnior, prometeu entrar nesta semana com uma ação que enquadre a Renova em suas obrigações. A movimentação do município pela volta da escola em tempo integral começou no fim de 2017. O programa, que estava funcionando parcialmente na época, teve de ser interrompido em sua totalidade, pois, com a queda da receita, não era mais possível fazer novas contratações para atender à demanda.
Segundo Duarte Júnior, o compromisso de voltar com a escola em tempo integral foi assumido com a prefeitura pelo presidente da fundação, Roberto Waack, e o Comitê Interfederativo (CIF), criado em resposta à tragédia. “Em maio de 2018, foi definido que a Renova arcaria com os custos da escola em tempo integral, pelo menos até o retorno das atividades da Samarco.
A despesa é de aproximadamente R$ 300 mil por mês. “Desistimos de conversar com a fundação. Estamos preparando a ação judicial e voltaremos a escola por nossa conta. Eles não conseguem perceber nem ter a sensibilidade do prejuízo que a falta do integral causa na vida de cada família”, afirma. E não é só isso. A prefeitura tem a obrigação legal de ter a escola em tempo integral. Ela está definida pelo Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014 pelo Congresso Nacional.
O serviço chegou a ser interrompido naquele ano e voltou de forma tímida posteriormente, pelo medo de o município não conseguir pagar suas obrigações. Atualmente, nenhuma escola da cidade oferece o tempo integral. Em processo de compra de materiais e contratações, a meta é voltar com 100% das atividades a partir do mês que vem.
“Algumas funcionaram ano passado de maneira precária, pois não tinham equipamentos adequados e faltavam monitores. O gasto é grande com pessoal, alimentação e aluguel de espaços, uma vez que parte delas não tem estrutura para atender em tempo integral”, explica Duarte Júnior. “A Renova acha que está atendendo a pessoa do prefeito. Mas ela tem que entender que eu represento o município. Trata-se de crianças que estariam na escola, bem alimentadas, e as mães teriam tranquilidade.
EM DISCUSSÃO Por meio de nota, a Renova disse que o apoio à retomada da educação em tempo integral em Mariana é parte das ações compensatórias no município e, por isso, tem sido discutido com a prefeitura e com o CIF. A fundação informou que vai ressarcir gastos de 2018, mas não prevê o pagamento relativo à totalidade dos meses nem das escolas que deixaram de funcionar por falta de verbas. “Já estão acordados tanto o ressarcimento pela Fundação Renova à Prefeitura de Mariana pelos gastos incorridos com o tempo integral no segundo semestre de 2018, quanto a continuidade das discussões com o sistema CIF sobre os critérios para alocação de recursos compensatórios nos anos seguintes”, diz o texto.
Questionada sobre o motivo do não cumprimento do acordo, ela não respondeu.
Crianças expostas e famílias passando aperto
Ele passa 10 horas na escola, tempo que seria muito bem aproveitado se estivesse em atividades pedagógicas. Mas a realidade do menino Vítor Gabriel Osório Moreno, de 7 anos, é bem diferente. Desde que o tempo integral acabou na Escola Municipal Monsenhor José Cota, no Bairro Cabanas, ele fica das 6h às 16h com a avó, cantineira do colégio. Sem ter onde deixar a criança, essa foi a solução encontrada pela família para evitar o destino de muitos meninos e meninas que não têm a quem recorrer enquanto os pais trabalham: a rua.
O garoto acorda por volta das 5h30 e vai para a escola com a avó, Vilma Auxiliadora Osório, de 54, que começa a trabalhar bem cedinho, aguardar o início das aulas, às 7h. Às 11h30, quando o sinal toca, ele continua lá, esperando fim da jornada de Vilma. Quando está muito cansado, se rende ao colchonete colocado de improviso no chão da cantina para ele dormir. “Eu nem poderia trazê-lo, mas como não tenho com quem deixá-lo, o diretor liberou”, conta a cantineira concursada, que trabalha há 22 anos na instituição de ensino.
Ela tem ainda uma netinha, Natally Aparecida Osório, de 4, que por demandar mais cuidados por causa da idade não pode ficar na escola. O jeito está sendo apertar para pagar os R$ 400 cobrados por uma cuidadora.
Diretor da Escola Municipal Cônego Paulo Dilascio, no Bairro Morro de Santana, distante 5 quilômetros da sede, Fernando Pereira de Freitas conta que o programa funcionou do fim de agosto até dezembro do ano passado. O colégio tem 191 alunos, sendo 10 turmas de ensino fundamental e duas do infantil. Desses, 45 eram parte da escola integral.
Vazias estão as salas preparadas para oficinas de música, teatro e dança – adaptada para aulas de balé e considerada uma das melhores estruturas da região. Há ainda uma sala para o trabalho com tintas (com equipamentos para higienização completa de materiais), auditório com palco em madeira propício às artes cênicas e duas salas para reforço pedagógico, o carro-chefe do tempo integral na Cônego Paulo. “Temos muitos alunos com dificuldade ou defasagem de aprendizado. Essas famílias não têm condição de pagar um professor particular”, relata o diretor. Todos os dias são oferecidas duas aulas para desenvolver, com o apoio de professores, as atividades de para casa e aquelas que não conseguiram ser feitas no tempo convencional de aula, além das dificuldades diagnosticadas pelos pedagogos.
Para Fernando de Freitas, o maior prejuízo gerado pela interrupção do tempo integral é a falta de oportunidades tanto no lado pedagógico quanto no social. “A escola não pode perder o pedagógico, pois perde seu sentido. O integral oferece o viés do social, ao contribuir e se associar a outras fontes de cultura”, afirma. “Os projetos do tempo integral enriquecem o conhecimento de mundo da criança para ela não ficar só na bola, celular e rua. Ele pode absorver tudo ou ter apenas uma noção, mas é nossa obrigação oferecer.”.