“Será que eu estou sonhando? Será que é verdade?” Essa foi a reação de Maha Mamo, de 30 anos, ao saber que o governo concedeu a nacionalidade brasileira a ela e à sua irmã, Souad Mamo, de 31, que até então eram consideradas apátridas. Apátridas são pessoas que não são titulares de qualquer nacionalidade. O anúncio ocorreu no início do mês, durante um evento na Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça, e deu fim a uma vida na invisibilidade e de incertezas quanto ao futuro. Com uma bandeira brasileira enrolada orgulhosamente no pescoço, a nova cidadã brasileira, que vive em Belo Horizonte, não conteve as emoções: “Foi uma grande surpresa e estamos muito felizes. É uma conquista muito importante para nós”, contou Maha.
O choro de alegria veio de um esforço durante toda a vida pelo reconhecimento como cidadãs. Isso porque todo bebê ao nascer é registrado e obtém um documento de identificação com nome, idade e nacionalidade. E é esse simples papel que, durante a vida, faz com que você consiga ter acesso a direitos básicos para exercer cidadania, como se matricular em uma escola para estudar, conseguir um emprego, fazer uma consulta médica no hospital, abrir uma conta bancária ou viajar para qualquer lugar. As irmãs Momo foram duas das 10 milhões de pessoas no mundo, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), que não tiveram esse documento e viviam nessa situação. Nascidas no Líbano, elas não puderam ser registradas no país porque o pai é cristão e a mãe, muçulmana. O casamento inter-religioso não é reconhecido no país árabe. Portanto, nem os filhos do casal puderam ser registrados.
Foi então que os três filhos pediram refúgio ao Brasil em 2014. E em Belo Horizonte eles foram acolhidos por uma família moradora do Bairro Serrano, na Região da Pampulha. Em junho deste ano, dois deles se tornaram os primeiros apátridas da história a ter a condição reconhecida pelo governo brasileiro, a partir da nova Lei de Migração (Lei 13.445). O irmão caçula, infelizmente, não teve esse sonho realizado, mais uma vítima da violência urbana do Brasil.
Souad e Maha Mamo lutavam para obter a cidadania brasileira e, finalmente, existir para o resto do mundo. Em 1º de outubro, elas prestaram o teste de proficiência na língua portuguesa. O resultado deveria sair em dezembro. Entretanto, em 4 de outubro, veio a grande surpresa, com a concessão da nacionalidade – o governo brasileiro reconsiderou uma prova feita por elas. “Com a nacionalidade, vamos tirar o passaporte e viajar pelo Brasil e pelo mundo”, disse ela.
DESAFIOS
PARA EXISTÊNCIA
Os desafios para sobreviver começaram já nos primeiros momentos de vida da família, já que, para o país, era como se essas crianças não tivessem nascido. O primeiro, e dos grandes, foi matricular as crianças na escola. “Nós éramos recusadas, já que não tínhamos documentos. Tudo o que conseguimos era na base do ‘favor’”, lembrou a jovem. As duas irmãs precisavam usar documentos emprestados de amigos para atividades básicas, como comprar um chip de telefone, entrar em uma festa ou se consultar em um hospital.
Ela lembra de um episódio de emergência em que poderia ter morrido se não fosse pela solidariedade de uma amiga: “Estava em um casamento quando comi algo de que tenho alergia. Foi então que eu e uma amiga corremos para um hospital. Na primeira tentativa, disseram que não poderiam me atender. Corremos para o segundo hospital. Lá, já estávamos tão frustradas e eu passando tão mal, que ela me emprestou os seus documentos. Fui atendida como Nicole”.
E, para complicar ainda mais, uma guerra civil foi deflagrada em 2006 no Líbano: “Com a guerra, a quantidade de blitze no Líbano aumentou, por causa das bombas. Se a polícia nos encontrasse sem documento, éramos consideradas terroristas. Podíamos ser presas. Então, tornou-se ainda mais complicado sair na rua, estudar, conseguir qualquer outra coisa”. Diante dessa situação, elas passaram a enviar pedidos de socorro para outros países, escrevendo cartas para embaixadas no mundo inteiro.
Após apelar a representações diplomáticas e governantes de mais de 190 países durante anos e a maioria negar ou não facilitar a emissão de documento, as irmãs conseguiram vir para o Brasil em 2014, com o irmão mais novo, Edward. O governo brasileiro emitiu para a família um passaporte provisório, equivalente ao que o estrangeiro recebe quando perde o documento enquanto visita o país. “Foi o primeiro lugar onde eu consegui documentos com foto e nome”, contou.
EM MINAS GERAIS A família foi recebida no Brasil como refugiada, já que o conceito de apátrida nem existia no país. Os irmãos Mamo desembarcaram no Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, Grande Belo Horizonte, em setembro de 2014, depois de conhecer uma família pelas redes sociais ligada a grupos religiosos. “Eu não conhecia absolutamente nada sobre o Brasil e, muito menos, sobre Belo Horizonte. Achava que se falava espanhol. Após a oportunidade de sermos acolhidos, abri o Facebook, digitei ‘Brasil’ e vi que uma amiga tinha feito check-in no Rio de Janeiro em 2013. Foi ela quem me passou o contato de uma família de BH, onde fomos recebidos”, conta. Primeiro, Souad veio e, em seguida, Maha e Edward.
O trio viu na capital mineira a esperança e a grande oportunidade de começar uma nova vida. Acolhido por uma família no Bairro Serrano, o trio que chegou do Líbano enfrentou uma grande barreira cultural e linguística – já que nenhum deles falava português e nenhum dos belo-horizontinos com os quais eles tinham contato falava inglês. Mas, Souad, Maha e Edward estavam felizes demais para se preocupar com isso e dispostos a aprender tudo sobre o país e sobre a cidade.
Isso até que em 30 de junho de 2016, o irmão delas sofreu uma tentativa de assalto e foi assassinado, aos 26 anos. Edward Mamo estava em um carro parado em uma rua do bairro, quando eles foram abordados por dois homens e uma mulher, que anunciaram o assalto. Edward não falava português e os homens mandaram a vítima entregar a chave do carro. Como não entenderam o que o rapaz dizia, um dos assaltantes atirou duas vezes para o alto. Ao ver que não conseguiria levar o carro, ele atirou contra o peito de Edward.
Ele chegou a ser levado para uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), onde chegou a ser atendido, mas não resistiu. Maha estava no interior de São Paulo quando isso aconteceu. “Foi a maior tristeza da minha vida. Eu só conseguia chorar, chorar, chorar. Viajei correndo para BH, não conseguia acreditar o que tinha acontecido com o meu irmão.” O caso comoveu a capital mineira e uma campanha na internet buscou arrecadar dinheiro para o traslado do corpo de Edward para ser sepultado em seu país de origem, onde os pais ainda moram.
Desde então, a luta de Maha mudou: “Não quero viver nem mais um dia sem passaporte. Quero minha nacionalidade. Não quero mais viver em um limbo”, declarou ela, antes de ter a nacionalidade concedida. Antes da nova Lei de Migração, o Brasil recebeu as apátridas como refugiadas. Após conquistar os primeiros documentos nessa condição, elas deram um passo importante: o reconhecimento da condição de apátridas. Assim, as irmãs Maha e Souad Mamo puderam, finalmente, requerer a naturalização brasileira – procedimento disponível especificamente para quem não tem nacionalidade. Na prática, quando consideradas brasileiras elas passam a ter todos os direitos civis de cidadãos nacionais – como ter passaporte e acesso ao sistema público de saúde.
“O Brasil me deu a vida e tenho um carinho especial por BH. Muitas vezes sou questionada por viver no mesmo lugar onde meu irmão faleceu. Mas, deixo claro: o Brasil deu vida para o meu irmão. Quando ele faleceu, se ele estivesse em outro lugar, ele não teria nem nascido e nem morrido”, contou. Ela hoje mora no Bairro Sion, na Região Centro-Sul da capital mineira. Decidiu se dedicar à causa que envolveu sua vida. Maha ainda tem tido um papel de ajudar a sensibilizar funcionários governamentais e parlamentares sobre o problema e a importância de facilitar a naturalização de pessoas apátridas. “Agora, o Brasil virou exemplo para outros países. Minha meta simplesmente é levar essa lei daqui para o mundo inteiro”, contou. Em 2016, segundo levantamento da ONU, cerca de 60 mil pessoas apátridas que viviam em 31 países adquiriram nacionalidade.
CRISE DOS REFUGIADOS
A história das irmãs Maha faz lembrar os ânimos exaltados contra a presença de imigrantes no país. Pensando nisso, o governo de Minas Gerais instituiu o Comitê Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo (Comitrate), como forma de garantir ações urgentes para atender à crescente demanda, principalmente de refugiados e imigrantes em Minas. Estudo feito a partir de uma pesquisa com 376 imigrantes traçou o perfil de pessoas que buscaram Minas para morar. Belo Horizonte é o município que concentra mais imigrantes (36,9%), seguido por Contagem (8%) e Uberlândia (5,8%). O diagnóstico aponta para uma interiorização crescente do fenômeno, que tem ampliado sua capilaridade no estado. Aproximadamente, 60% dos imigrantes que moram no estado são provenientes de 10 países. Lideram a lista: Haiti (11,3%), Colômbia (8,2%), Portugal (7,2%), China (7,1%) e Itália (7%). Para compilar os dados, foram utilizados dados do Censo do IBGE e do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça.
O deslocamento forçado provocado por guerras e perseguições atinge hoje o número recorde de 65,3 milhões de pessoas, conforme relatório mais recente da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Com 10.418 refugiados, incluindo reassentados, o Brasil responde por 0,016% dos acolhimentos. Em Minas, segundo o diagnóstico, há 183 refugiados e/ou solicitantes de refúgio. Esse número, entretanto, pode ser maior, uma vez que muitos entram no país de forma irregular. De acordo com a publicação, a maioria dos refugiados (60,7%) que mora em Minas é proveniente da Síria, onde a guerra civil já causou a morte de milhares de pessoas.