Jornal Estado de Minas

MONTANHAS DE HISTÓRIAS

EM refaz trajeto de tropeiros entre Lapinha da Serra e Conceição do Mato Dentro



Conceição do Mato Dentro e Santana do Riacho – A voz é mansa, mas as palavras vêm de arranque. Assim se fala o igatu, regionalismo linguístico confinado nos vales de Lapinha da Serra, por meio da qual o sertanejo José Cândido de Oliveira, de 90 anos, o seu Juquinha, lembra como esse badalado destino turístico vizinho à Serra do Cipó mudou com a passagem dos anos. Pouca gente repara como aquele local ainda preserva histórias e características dos sertanejos. O povoado original, pertencente ao município de Santana do Riacho, saltou de três para 300 habitantes, mas chega a reunir 5 mil pessoas em celebrações como a festa de são-joão. As cachoeiras que encantam visitantes serviam só para coleta de água e a travessia que desportistas percorrem até Conceição do Mato Dentro era a única rota para habitantes, tropeiros e mascates.





Conheça o roteiro de viagens da série Montanhas de Histórias


Ouvindo a prosa do seu Juquinha, o lado belo das montanhas dá lugar às dificuldades comuns a várias localidades tradicionais mineiras ao longo de sua evolução de arraiais para povoações mais bem constituídas. “Antigamente, a gente aprontava de seguir junto com a tropa, nessas trilhas que tem no mato. Só assim para trazer as coisas, já que não tinha estrada. Eram 11 burros alinhados, que tinham de vencer as pedras para o alto e descer nas grotas sem escorregar nas pedras soltas”, conta o mais velho habitante da Lapinha. As chuvas e o frio só pioravam a situação das tropas. “Quando tinha chuva, os rios tomavam o trilho, tinha barro e caíam barreiras, desciam os barrancos. Tinha que pegar o (asno) líder da junta e colocar um peitoral de couro nele, para ir guiando a subida da tropa. Os outros burros seguiam esse que dava o caminho. Quatro pessoas davam conta de tocar a tropa, mas era trabalho para mais de quatro dias”, lembra seu Juquinha.

Os desafios dessa trilha de 27 quilômetros, entre os parques da Serra do Intendente, Natural Municipal do Tabuleiro e Área de Preservação Ambiental (APA) do Morro da Pedreira, foram percorridos pela reportagem do Estado de Minas, numa travessia que ilustra as dificuldades enfrentadas pelos sertanejos que precisavam cruzar as longas distâncias do território mineiro. Relatos trazidos pela série Montanhas de histórias, publicada pelo EM desde março, são uma forma de reverenciar a saga dos mineiros pela perspectiva das montanhas que dominam oterritório das Minas e das Gerais.

O trajeto mais tradicional desse caminho se inicia em Lapinha da Serra e dura três dias até chegar a Conceição do Mato Dentro. Contudo, o sentido oposto tem ganho adeptos. Principalmente porque Conceição do Mato Dentro apresenta dificuldades hoteleiras e conflitos sociais que andam desanimando alguns turistas encontrados pela reportagem. Um fator que nada tem a ver com o turismo, mas sim com a economia mineradora, que atraiu milhares de pessoas para o município, incorporando à rotina que antes era pacata uma grande circulação de automóveis, violência e costumes importados de grandes centros, sobretudo da Grande BH. Já a Lapinha da Serra se manteve próxima de suas raízes interioranas, de um povoado que surgiu com sete famílias originais e nem sequer tem estrada asfaltada.



E um dos guardiões dessa cultura cabocla é seu Juquinha, o ancião da vila que ainda conversa com o sotaque de seus ancestrais, toca viola e dança o batuque, uma forma de manifestação cultural com dança e música típicos da comunidade. Com seu violão de 12 cordas, o patriarca da comunidade reproduz canções que lhe foram passadas pelos antigos e outras de sua própria composição. “A gente aprendeu com os tios, com os primos, com a família mesmo. Eram essas as músicas que a gente tinha para receber quem vinha de longe ou alegrar a partida daqueles que iam embora”, conta. Um dos batuques de sua autoria retrata justamente a solidão da travessia feita pelas trilhas montanhosas da Serra do Intendente. “Eu não tenho como ir embora. No sereno da madrugada. Toda vez que eu for embora. Tira a pedra do caminho. Bota a barreira entrada.”

O rigor das tempestades era mesmo o que mais impunha dificuldades nessas estradas primitivas. “Nas águas (temporada de chuvas), quando tinha de atravessar o rio, a gente mandava os burros para a água e eles brigavam para atravessar. Mas os burros sabiam onde entrar e sair. Os animais sabiam nadar e atravessavam com toda a carga neles. Nas bolsas dos burros a gente trazia milho, feijão, arroz. De tudo que precisava um pouco tinha. Já teve vez que a gente levou até caixa de madeira com cervejas”, lembra seu Juquinha. Considerado um dos marcos da travessia, a Cachoeira do Tabuleiro não atraía a atenção dos tropeiros daquela época. “A gente dormia nas casas das pessoas que moravam no meio do caminho. À cachoeira mesmo, ninguém ia. Aquilo lá era abandonado, ninguém descia lá para fazer nada. Ali era tudo vago”, conta. Olhando para trás, o caboclo constata profundas mudanças no vilarejo onde cresceu e formou sua família. “A Lapinha virou cidade. A Lapinha tinha três casas na minha época. Tenho saudade daqueles tempos em que a gente conhecia todo mundo. A gente juntava para fazer o nosso batuque, as festas”, disse.

Seu Juquinha relembra as canções que eram usadas para receber quem vinha de longe ou alegrar a partida dos que iam embora (foto: Leandro Couri/EM/DA Press)

 

(A LOJA ROTA PERDIDA/ROTA EXTREMA - www.rotaperdida.com.br - forneceu parte dos equipamentos usados nas expedições)