Jornal Estado de Minas

Qual a relação do surto de febre amarela com o desastre de Mariana?


A destruição de mais de 1.775 hectares de margens da bacia do Rio Doce – sendo 324 de mata atlântica (equivalentes a 453 campos de futebol) –, a morte de toneladas de peixes, a falta de confiança na água que abastece comunidades e a suspensão da pesca são notoriamente culpa do rompimento da Barragem de Fundão, da Mineradora Samarco, em 2015. Esses estragos são reconhecidos pelo Ibama, ICMBio e secretarias de Meio Ambiente de Minas Gerais e do Espírito Santo. Mas um boato que corre desde o ano passado tem colocado também na conta do maior desastre socioambiental do Brasil a disseminação da febre amarela.



Não adianta especialistas refutarem essa informação ou instituições garantirem não haver estudos que possam relacionar o rompimento da barragem com o surto da doença tropical: a penetração das redes sociais acaba reforçando essa teoria sem qualquer embasamento, com a repostagem exponencial do texto, muitas vezes atribuído a fontes que negam qualquer relação com isso. A degradação ambiental, segundo especialistas, é um importante componente no alastramento do surto, bem como a deficiente cobertura vacinal em regiões endêmicas como o estado de Minas Gerais.

O boato ganhou força após uma entrevista da bióloga Márcia Chame, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em que ela atribui a explosão do número de contágios ao desastre que se originou em Mariana. A Fiocruz informa, no entanto, que a declaração da especialista não limitava a ocorrência do surto a esse rompimento em específico e isoladamente, mas a uma sequência ampla de ações de devastação que vêm tirando o hábitat de macacos contaminados e os aproximando das áreas urbanas no último século. “Não há nenhum estudo da Fiocruz que comprove ou indique uma relação direta entre o rompimento da barragem e o surto de febre amarela”, informou a assessoria de imprensa da fundação. “O processo é complexo. Temos impactos com muitas origens ao longo da história.

Antes, o ciclo de febre amarela se mantinha na floresta”, declarou a especialista.

Outra publicação com o mesmo teor circulou sendo atribuída a um dos mais influentes biólogos e ambientalistas do Brasil, André Ruschi, morto vítima de uma infecção em abril de 2016. O texto que cita o ecologista destaca como fonte o Museu de Biologia Professor Mello Leitão, do Espírito Santo, onde Ruschi trabalhava. Pela postagem, o cientista e um amigo teriam visitado uma fazenda atingida pela lama onde perguntaram a um funcionário se ele vinha ouvindo sapos coaxando. A resposta teria sido negativa e, com isso, segundo a publicação, Ruschi respondeu: “Então se preparem para um surto de febre amarela, pois, sem peixes e sapos é inevitável isso acontecer”, afirma o post, insinuando que a multiplicação dos mosquitos foi favorecida pela pavimentação das lagoas marginais e dos berçários de peixes e girinos.

Contudo, o Museu de Biologia Professor Mello Leitão (INMA) se adiantou ao boato, negando ter qualquer relação com o texto que o cita como fonte. “Trata-se de um perfil falso, que utiliza um nome invertido do Museu Mello Leitão, como também é conhecido, aparentando tratar de informação do museu. Por violar as regras do Facebook, o post foi denunciado e retirado do ar. Qualquer material ali publicado não tem origem nem expressa a opinião do INMA nem de pessoas que o representam”, informou a instituição.

 

 

INVESTIGAÇÕES De acordo com o subsecretário de Vigilância e Proteção à Saúde, Rodrigo Fabiano do Carmo Said, não há estudos que embasem essa relação, mas há investigações sendo feitas.

“Entendo que é uma afirmação que precisa de confirmação científica. Trata-se mais de especulação do que de fato comprovado. É importante ser estudado, há instituições fazendo isso, mas precisamos pensar que também existem outras regiões com casos humanos e epizootias (de animais) que não foram atingidos pela barragem e nem estão próximos”, disse o subsecretário.

O biólogo Carlos Alfredo Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também já tratou sobre esse caso, que considerou como uma falha de interpretação. “O surto tem mais relação com a falta de cobertura vacinal das áreas com recomendação de vacina do que com a devastação que a bacia do Rio Doce sofreu. Por si só gravíssima, já que compactou o solo e pode impedir que em uma geração as matas destruídas voltem a ser como foram uma vez”, afirmou. Entre julho de 2014 e dezembro de 2016, quando os primeiros pacientes do surto começaram a adoecer, a ocorrência de casos humanos foi compatível com o período sazonal da doença. Porém, o Ministério da Saúde alertou o governo mineiro que a morte de macacos em períodos considerados anormais indicava que as condições eram favoráveis à propagação da virose entre humanos, o que exigia ações e esforços adicionais de vigilância, prevenção e controle. Contudo, a cobertura vacinal da época no estado, que tem indicação de vacinação em praticamente todo o território, não passou de 47%.
Atualmente, está em 82%.

Um dos estudiosos dos impactos da tragédia de Mariana e que já ministrou painéis com a temática da relação da febre amarela com o rompimento da barragem é o biólogo e professor de ecologia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Sérvio Ribeiro. De acordo com o especialista, um desequilíbrio maior poderia ter ocorrido caso o rejeito da barragem tivesse invadido as florestas das regiões atingidas pelo vírus antes da Barragem de Candonga, que absorveu cerca de 20 milhões de metros cúbicos de lama em seu reservatório. Nas porções além da barragem, trechos do médio e baixo Rio Doce, a lama não chegou a sair da calha do rio, não afetando a vegetação ciliar ou reservas florestais. “(Essa relação dos surtos de febre amarela com o rompimento da barragem) não faz muito sentido. As populações de mosquitos, macacos e vírus estão intrinsecamente relacionadas ao interior da mata”, disse.

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