Jornal Estado de Minas

Conheça histórias de luta e superação de transexuais que se tornaram profissionais respeitados



Na manhã de 12 de dezembro de 2017, o ritual de produção de Danielle Moreira Silva para trabalhar foi diferente. No lugar da camisa social larga e escura, da calça masculina e daquela fatídica fita que apertava os seios até torná-los quase imperceptíveis, colocou um vestido estampado com rosas vermelhas, cuidadosamente escolhido para aquele dia. As unhas também permaneceram pintadas, não havia mais nada a esconder. Leve por dentro e linda por fora, Danny Scarlat – apelido que escolheu colocar no crachá – chegou ao Hospital Municipal Doutor Célio de Castro, no Bairro Milionários, na Região do Barreiro, no dia da inauguração total da unidade, assumindo todas as suas formas femininas e sua verdadeira identidade de mulher transexual. Ali, se encerrava um ciclo triste da história da contadora, que por anos escondeu sua identidade de gênero no trabalho, por medo de perder o emprego, sofrer preconceitos ou perseguições e se iniciava uma nova fase: “Foi uma das primeiras vezes na vida que eu me senti importante.”

Nascida na zona rural de Águas Formosas, no Vale do Mucuri, Danielle viveu com o pai, a mãe e dois irmãos em um ambiente hostil, por sempre se considerar um “menino afeminado”. Somente na adolescência, já vivendo na capital mineira, passou a se entender como transexual – pessoa que não se identifica com as características do gênero designado a ela no nascimento. Estudou ciências contábeis em uma universidade particular e, como qualquer jovem, desejava um emprego e estabilidade financeira. Em 2015, foi contratada pelo hospital.
Porém, deixava a sua feminilidade em casa e mascarava, com roupas masculinas, a mulher que reconhecia em si. Passou mais de dois anos se “fantasiando”: “Não conseguia me assumir 24 horas. Era como um personagem que criei para vir trabalhar. Era como colocar a máscara. Isso era muito difícil, mas sabemos que o mercado de trabalho é preconceituoso. Se eu perdesse o emprego, como conseguiria um novo trabalho?”, relata.

Laura Zannoti venceu obstáculos e conquistou espaço incomum no universo trans: é chefe de escritório de uma startup multinacional de tecnologia - Foto: Túlio Santos/EM/DA Press

Empresas que respeitam a diversidade e acolhem profissionais transexuais, travestis e transgênero ainda são poucas no Brasil. Entre tantas barreiras, como o preconceito, a dificuldade ao acesso educacional, a violação de direitos e a falta de representatividade, ainda existe a indisponibilidade de vagas no mercado para essa população.
O país amarga uma posição vergonhosa nas estatísticas de pessoas transexuais empregadas. Apenas 10% da população trans tem um emprego formal. Sem oportunidades, os outros 90% desse grupo acabam recorrendo a trabalhos informais como a prostituição, segundo dados da ONG Transgender Europe.

Na semana que antecipa o Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais, comemorado em 29 de janeiro, o Estado de Minas ouviu Danielle Moreira Silva, que preferiu não revelar a idade, Nathan Phelipe, de 26 anos, e Laura Zannoti, de 30, para relatarem como encaram a discriminação diária, a dificuldade de passar pela transição no mercado de trabalho e como conseguiram um emprego formal e estabilidade financeira.

Homem trans, Nathan Phelipe perdeu emprego em multinacional por pressão de colegas religiosos e só a muito custo conseguiu voltar ao mercado - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press

Assim como Danny, Laura Zannoti é uma exceção das estatísticas e se tornou a atual chefe do escritório da Thoughtworks em Belo Horizonte, uma startup internacional de tecnologia. Mas ela também enfrentou dificuldades para transpor as barreiras do preconceito e assumir a identidade de gênero no trabalho. No seu período de transição, – quando transexuais passam a se submeter a tratamentos hormonais e/ou cirúrgicos –, não teve apoio da empresa onde trabalhava na época. “Era um call center. Depois de quatro anos que eu estava lá,  passei ao cargo de supervisora. A essa altura, a maioria das pessoas já sabia.
Então, aos poucos, fui levando a Laura para esse ambiente. Aí era cabelo solto, as roupas foram mudando aos poucos. E foi exatamente quando fiz seis anos de empresa, nas minhas férias, que decidi colocar silicone nos seios”, lembra. Depois da transição, ela voltou à empresa e assumiu a identidade trans.



NOME SOCIAL
Já é regulamentado pelo município de Belo Horizonte, pelo estado e pelo governo federal que o nome social pode ser incluído em vários serviços. Nome social é aquele adotado por travestis e transexuais em sua vida cotidiana, em vez do inscrito no registro de nascimento. Apesar de o avanço já ser garantido por lei, o desafio é implantá-lo dentro das empresas e o mesmo ser respeitado pelos colegas de trabalho. Foi o caso de Laura. A empresa não aceitou alterar os registros internos dela, mantendo a identificação do crachá com o nome antigo. Os desafios e constrangimentos no ambiente de trabalho passaram a ser diários. “Eu me escondia quando alguém do Recursos Humanos ia lá me procurar.
Em reuniões com os clientes, ficava sem jeito, porque tinha que me apresentar fisicamente. Quando viam que o nome daquela pessoa com quem trocavam e-mails todos os dias não condizia com a imagem era muito complicado”, relembra. Sem expectativa de crescimento na organização, ela deixou o emprego dois após a transição.

Duda Salabert, coordenadora da ONG Transvest - Foto: Leandro Couri/EM/DA PressTRANSFOBIA INSTITUCIONAL “Não contratamos esse tipo de pessoa”. Essa foi a frase que o jornalista, designer e acadêmico em pedagogia Nathan Phelipe, de 26 anos, ouviu durante entrevistas de emprego. Ele contou que trabalhou em uma grande multinacional, onde chegou a ter uma carreira estável. Mas, por causa de preconceito e de recorrentes casos de assédio, decidiu deixar a empresa. Partiu para uma segunda experiência no mercado de trabalho como um homem transexual. “O dono me respeitava muito e os funcionários também. Mas fui transferido para uma nova unidade onde, por ter funcionários religiosos, colocaram pressão para que me demitissem. Acabei saindo e fiquei seis meses desempregado.
Foi então que começou a batalha”, contou. Uma das pautas levantadas pelos movimentos de luta dos direitos das pessoas trans e travestis é que não basta a empresa se dispor a contratá-los e inseri-los no mercado. É necessário uma capacitação para que os outros funcionários saibam lidar com as questões.

No período desempregado, Nathan fazia “bicos” e vendia doces na rua. Foi então que, há três anos, participou de um processo seletivo para trabalhar no Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Foi um processo seletivo somente para transexuais, de 124 candidatos entre meninos e meninas, eu passei”, contou. “A transfobia é enorme, por falta de informação. Quando a pessoa já está totalmente adequada fisicamente e com os documentos, as oportunidades aparecem”, completou Nathan.

Danny Scarlat, a contadora que trabalha no Municipal Doutor Célio de Castro, ainda aguarda os novos documentos civis. Mas decidiu se antecipar e procurar o Recursos Humanos (RH) da empresa para se assumir. Já se assumir como Danielle pode ajudar a acelerar o processo judicial. “Hoje, me sinto realizada no trabalho. Agora, preciso só dos documentos para me completar”, contou ela.

Com o apoio institucional foi mais fácil mostrar quem era – apesar de ter que esperar por mais de dois anos. “Primeiro, você tem que provar que é capaz de fazer o serviço. Uma pessoa trans precisa de se provar pelo menos cinco vezes mais que um cisgênero (toda pessoa que se identifica com as características do gênero de nascimento). Nós, que temos estabilidade, ainda somos a exceção”, afirmou. Em um país transfóbico, Danny acredita que fez a escolha certa: “Se eu tivesse me assumido com 20 anos,  não estaria em casa, não teria o apoio da família, poderia estar na marginalidade, poderia estar na prostituição. Optei por ter carreira, conquistar a confiança das empresas. Se não fosse assim,  não chegaria até os meus 35 anos. Estaria morta ou debaixo da ponte.”

TROCA DE  DOCUMENTOS 
Não há no Brasil uma legislação que regulamente e determine a alteração imediata do registro civil depois do processo de transição de gênero. Assim, resta aos transexuais pleitear judicialmente a alteração. Alguns juízes permitem a mudança do prenome do indivíduo, com fundamento nos princípios da intimidade e privacidade. Outras decisões, por sua vez, não acatam o pedido, negando-o em sua totalidade, com base estritamente no critério biológico.

Cursos na trilha da inclusão


A ONG Transvest oferece cursos a transexuais e travestis que lutam por respeito, estudo e emprego. A iniciativa, que está completando três anos, aumenta as oportunidades dessas pessoas no mercado de trabalho. Segundo a idealizadora e coordenadora, Duda Salabert, a Transvest busca incluir esse grupo em espaços de poder. “Por isso, criamos um grupo de empregabilidade na ONG. Entramos em diálogo com as empresas na busca de conquistar vagas e mostrar a importância de incluir travestis e trans no mercado de trabalho. Não existe em BH, nem mesmo no Brasil, a empregabilidade trans, porque não temos uma estrutura e política de inclusão. O que existem são empresas isoladas que oferecem poucas vagas para travestis e trans”, contou.

Ao discutir a situação da população trans, é importante lembrar que, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, no Brasil, 90% desse grupo está na prostituição. A expectativa de vida de uma travesti no Brasil é 35 anos – metade da média nacional. “Ou seja, a sociedade exclui, marginaliza e coloca a população travesti e trans nas margens. Por isso, lutamos pelo reconhecimento de humanidade. Como o direito ao acesso ao mercado de trabalho, que é uma categoria fundamental para que ela seja conquistada”.



EVASÃO ESCOLAR 
Um dos argumentos das empresas é que esse segmento da população não está qualificado. Mas se não está qualificado, muitas das vezes é porque a própria escola acaba empurrando as pessoas trans para fora, devido à transfobia. Apenas 59,4% estudaram até o 3º ano do ensino médio. A violência também é alta: 96,4% sofreram ataques físicas e 45% saíram de casa entre os 13 e os 17 anos por preconceito da família. Os últimos números tabulados são da pesquisa “Direitos e violência na experiência de travestis e transexuais na cidade de Belo Horizonte: construção de um perfil social em diálogo com a população”, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ainda não há pesquisas que apontem números de pessoas trans e travestis no mercado de trabalho de BH. “As empresas também têm que se engajar, dando cursos e qualificando transexuais para que esses possam ocupar vagas”, defende Duda.

Segundo ela, a melhor forma de mudar a realidade é contratar transexuais e travestis para desconstruir o estigma sobre a identidade. Como as pessoas não convivem com essa população, acabam a “exotificando”. “Nos olham como se estivessem indo ao zoológico porque os espaços de poder não são ocupados por nós, por causa de uma transfobia institucionalizada. A melhor forma é contratar e, assim, as empresas vão entender o que essas pessoas pensam. Não é nenhum bicho de sete cabeças. As pessoas dizem ‘ah, mas não sei como tratá-los’. Como você não sabe tratar uma pessoa? É só você perguntar ‘qual é o seu nome?’. Se o nome da pessoa é Maria, você vai tratá-la como Maria. Se é João, vai tratá-la como João. Não existe nenhum obstáculo”, defende a idealizadora. A dificuldade está em destruir o seu preconceito”, concluiu..