'Nunca vou me esquecer', desabafa cabeleireira vítima de agressões racistas de advogado em BH

No dia mundial de luta contra o racismo, cabeleireira agredida física e verbalmente por advogado em BH relata indignação com o preconceito, despreparo da polícia e revolta com liberação do acusado

Valquiria Lopes
"As agressões verbais, de cunho racista, continuaram na frente dos policiais, que não reagiram. (...) No início, pensei que não ia dar em nada. Mas é exatamente pelo sentimento de impunidade que as pessoas não denunciam" - Taciana Cristina Souza Pires, cabeleireira, atacada quando embarcava em um ônibus no Centro da capital - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press
Enquanto a cor da pele e os cachos nos cabelos são motivo de orgulho para uma população que se conscientizou de suas origens negras, um preconceito histórico e arraigado persiste na sociedade brasileira. Ontem, Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, esse tipo de atitude ainda indignava a cabeleireira Taciana Cristina Souza Pires, de 28 anos, agredida física e verbalmente na véspera, quando subia em um ônibus no Centro de Belo Horizonte. Está longe de ser um caso isolado. Denúncias de pessoas que incitam ódio motivado pela cor, etnia, religião ou origem de suas vítimas somaram 401 casos – entre racismo e injúria racial – de janeiro a novembro do ano passado, em Minas, média de 36 ocorrências a cada mês ou mais de uma por dia. O mais recente flagrante de preconceito na capital chocou cidadãos e mobilizou movimentos e pessoas via redes sociais. O agressor, um advogado de 70 anos, foi detido e liberado sob fiança de R$ 1 mil. Ontem, ainda abalada com o episódio, Taciana contou ao Estado de Minas como foram os momentos que enfrentou e de onde tirou forças para levar o caso à polícia.


No salão de beleza onde trabalha, o clima era de solidariedade entre os colegas de profissão. Taciana estava nitidamente abalada, mas ao mesmo tempo mostrava determinação na defesa da cultura negra.

Ela disse que passou a noite praticamente acordada, pensando no episódio. “Nunca vou me esquecer daquele homem, de olhos azuis, me ofendendo, me chamando de macaca várias vezes. Mas eu sei que sou linda, meu cabelo é lindo e eu sou maravilhosa”, disse a profissional, que trabalha no salão Todo Black é Power, especializado em cabelos crespos. Confiante, ela explica os motivos que a levaram à delegacia para prestar queixa contra o agressor. “Não podia deixar passar batido, temos que denunciar. Faço isso hoje não só por mim, mas por todos os homens e mulheres que sofrem com o racismo diariamente”, afirma a cabeleireira.

O caso ocorreu quando Taciana entrava em um coletivo da linha 3503, na volta para casa. “Quando me virei, ele me deu um tapa na cara e disse que meu cabelo era feio, além de fazer outras injúrias raciais”, afirmou a jovem. Taciana conta que, com a reação de pessoas próximas, o agressor desceu e tentou fugir em um táxi. “As pessoas, revoltadas, não deixaram o taxista arrancar. Ele então saiu andando a pé, em direção à Praça Sete. Fomos atrás”, contou.

Mesmo detido pelos militares, o homem continuou com as ofensas. “As agressões verbais, de cunho racista, continuaram na frente dos policiais, que não reagiram. Quando chegamos à delegacia e vi a quantidade de advogados que o esperavam, percebi que queriam passar a mão na cabeça dele”, reclamou a jovem.
Porém, em pouco tempo houve uma mobilização via redes sociais e ativistas seguiram para o local, em apoio à cabeleireira.

Taciana revela que chegou a pensar em não fazer o boletim de ocorrência, mas disse ter sido motivada a levar o caso adiante pelas pessoas presentes. “No início, pensei que não ia dar em nada. Mas é exatamente por isso que as pessoas não denunciam, justamente pelo sentimento de impunidade”, afirma.

Levar o caso ao conhecimento das autoridades é exatamente a orientação dada pela delegada da Coordenação de Direitos Humanos da Polícia Civil, Elizabeth Martins. Ela explica que, apesar de ainda haver muito desrespeito em relação à raça, cor, etnia, religião ou origem, é preciso denunciar. “Antes, ofensas eram encaradas como uma brincadeira. As pessoas se sentiam ofendidas, mas permaneciam caladas. Agora estão tendo mais consciência”, afirma. Ela diz ainda que, apesar de em alguns casos haver dificuldades para se comprovar a acusação, na maior parcela dos processos há testemunhas, gravações e registros de internet que funcionam como provas.
Ontem, Taciana, ainda abalada, recebeu solidariedade de colegas de trabalho - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press
DESPREPARO A cabeleireira, no entanto, faz críticas ao trabalho policial. Ela diz que na Central de Flagrantes da Polícia Civil (Ceflan) 2, no Bairro Floresta, na Região Leste de Belo Horizonte, onde foi atendida, parte dos funcionários não estava preparada para lidar com a situação. “Quando todos viram a repercussão e vários repórteres na porta, um dos funcionários chegou a dizer: ‘Nossa, mas para que isso tudo?”, relatou.

Ela ainda se revoltou com a fiança que permitiu a liberação do acusado.
“Quando cheguei em casa, fiquei me perguntando: que justiça é essa? Eu não deixei que ninguém encostasse a mão no homem, justamente para garantir que a justiça legal fosse feita. Mas aí o responsável, que foi pego em flagrante, paga R$ 1 mil e vai embora para casa?”, questionou. Taciana conta que em nenhum momento o agressor se mostrou arrependido. O Estado de Minas tentou contato com o homem detido pela agressão, mas ele não atendeu às ligações. Na Ceflan 2, o advogado dele foi contatado, mas não quis se pronunciar sobre o caso.

EM acompanhou registro da denúncia na delegacia. Assista:




 

Exposição no Detran


No Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, a Polícia Civil abriu exposição fotográfica chamada Invisibilidade Social. A ação visa a marcar a data, trazendo fotografias do artista Felipe Soares, que retrata um homem negro subjugado nas ruas da cidade grande. A campanha foi iniciativa da Coordenação de Direitos Humanos e do Departamento de Trânsito de Minas Gerais (Detran-MG), e será exibida no pátio do departamento, na Avenida João Pinheiro, no Bairro Funcionários, Centro-Sul de Belo Horizonte, até sexta-feira.

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