Jornal Estado de Minas

Extremos Gerais

Repórter do EM cruza Minas de Norte a Sul em bicicleta e relata histórias

- Foto: Arte EM

De um lado, o sol inclemente no meio do céu azul anuncia a proximidade do sertão baiano; de outro, o ar da montanha recebe os ventos frios que sopram desde São Paulo. Distantes entre si e diferentes – quando não opostos – no clima, no relevo, nos sotaques e nos paladares, os extremos de Minas têm em comum a beleza e o isolamento, que beira o abandono quando se trata do poder público. Ligando Norte e Sul, uma rota traçada entre sertões, cerrado e montanhas corta a maior malha viária do país, mostrando pelo caminho a grandeza do estado, que pode ser observada bem mais de perto sobre duas rodas, em um desafio de mais de 1.500 quilômetros de bicicleta, que consumiu nada menos que 84 dias de jornada, a metade deles na travessia do estado de ponta a ponta. Mais que a paisagem, o que se revela diante do viajante é o jeito reservado, mas afetuoso, do mineiro, que mesmo para descrever os cenários mais vastos prefere palavras no diminutivo. Assim, fizemos das  fazendas Brejinho e Pedrinha nossos pontos cardeais, portais desta viagem cujo diário revelamos a partir de hoje.


De saída, em cada extremo chama a atenção quão longínquo fica o poder público. Seja nos vales do Norte, seja nos montes do Sul, o mineiro parece receber o visitante entre a esperança e o temor de se tratar de um representante do governo. “É do Ibama?”, questiona um. “É do Censo?”, sonda outro.

Perguntas que indicam a rotina de quem se acostumou a só ser lembrado para ser transformado em número ou para ser fiscalizado. Estradas –  definem alguns – vão do pó na estiagem à lama na chuva. E mesmo a tranquilidade um dia garantida pelo isolamento vai se perdendo, já que os criminosos também perceberam que nesses lugares os representantes da lei são raros ou estão longe.


Mas, mesmo diante da justificada apreensão que os forasteiros despertam, a hospitalidade mineira se descortina depois de poucas palavras. Foi assim, e depois de muito chão, que conhecemos o extremo Norte, onde o Rio Carinhanha segue sinuoso, riscando a divisa com a Bahia. Cuidando para não atrapalhar o tarrafeiro Pio, que observa a movimentação dos peixes na água, pode-se subir em um barranco para avistar o último pedaço de margem mineira. “Minas começa num joia”, define a cozinheira Lucidalva Angélica. No Restaurante da Dalva, em Juvenília, a cidade mais setentrional do estado, ela se explica, indicando no mapa uma espécie de polegar erguido desenhado pelo curso das águas.

A cidade mais sábia do mundo


É também no relevo, diversos 1.500 quilômetros mapa abaixo, no extremo Sul, que se inspira uma lenda para explicar de onde teriam vindo tantos picos que despontam no horizonte.

Conta -se que, no começo dos tempos, Deus pedira a paulistas e mineiros que espalhassem os montes de terra. Apenas os vizinhos teriam obedecido. Assim, novas remessas se acumularam, explicando o grande número de montanhas em Minas.


Entre elas, partindo de Extrema, a cidade mineira mais ao sul, e seguindo pela divisa em uma pequena estrada de terra que corta a Serra da Mantiqueira, um marco datado de 1935 separa São Paulo de Minas. Do lado paulista, a zona rural de Joanópolis; do lado mineiro, a zona rural de Camanducaia, no pedaço de território mais meridional do estado, conhecido por nativos e praticantes de mountain bike como Morro do Abel. A pedra preserva a grafia antiga, em baixo-relevo, e avisa: ali começa “Minas Geraes”.

Sul: Camanducaia - Foto: Túlio Santos/EM/DA Press

DIÁRIOS DA BICICLETA

"Cada montanha foi conquistada"

‘Extremos gerais’ é resultado de um projeto experimental que explora novas possibilidades no deslocamento de longas distâncias em bike de trilha. Sem janelas, portas ou travas, a exposição maximizada aos elementos e à geografia do trajeto implica interações e percepções diferentes: nesta reportagem, cada montanha foi conquistada; cada etapa teve de ser negociada em todos os aspectos, do planejamento à execução.

Pedalando no sertão e em trechos de estradas de terra isoladas, descobri lugares, pessoas e histórias aos quais não chegaria de carro. Foram 84 dias em campo, 30 deles no extremo Norte; 12 no extremo Sul. Rasgar Minas de ponta a ponta consumiu ao todo outras seis semanas. A maior parte do trajeto foi feita contando com apoio de moradores, alguns através de contatos prévios, muitos em encontros fortuitos pelo caminho. Em mais de uma ocasião e nos locais mais isolados, a ajuda veio de completos desconhecidos. Dos grandes irmãos Din e Dão, que me abrigaram no Clube Juvenília, facilitando o início da expedição (e dificultando minha saída da cidade, dado o excesso de hospitalidade), ao colega ciclista Joselito, que entre outras coisas descolou um chalé em conta no ponto final da expedição, em Monte Verde. Ao longo de toda a distância percorrida, a boa vontade da gente de Minas nunca esteve longe.

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