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Estado de Minas

Risco de contágio de doenças e percevejos transforma em drama a pernoite no maior albergue público de BH

Muitos preferem rejeitar acolhimento onde vivem até 400 homens


postado em 03/07/2016 11:00 / atualizado em 05/07/2016 11:54

“Olha, você não quer um vale-transporte para ir para a casa de um familiar? Aqui, você vai estar no meio de gente que usa drogas, gente violenta, falta higiene e ainda pode pegar doenças difíceis de tratar. Temos muitos tuberculosos que não se tratam ou bebem e os remédios não fazem efeito. Podem te passar a doença pela tosse nos quartos onde dormem de 10 a 30 pessoas”. O conselho não foi de um morador de rua nem de um membro de organização que defende os direitos de pessoas nessa condição. Veio da assistência social do maior abrigo da capital mineira, para 400 homens, o Tia Branca, na Floresta, Região Leste de BH, onde ingressei na segunda-feira para presenciar quais os motivos que levam tantos homens e mulheres em situação de rua a rejeitar o acolhimento nessa instituição mantida pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).

Com a insistência no pernoite, recebi um cartão e entrei por um corredor que leva a um pátio, onde centenas de jovens e idosos ocupam cada metro quadrado, se aconchegando entre mochilas e sacolas com seus pertences, o que lembra cenas de um presídio de pessoas livres. Cartazes alertam sobre infestações de percevejos e ditam procedimentos para evitar as picadas durante a noite.

Sem saber a rotina e os procedimentos, entrei nas filas erradas e aprendi, aos palavrões e empurrões, que como não tinha cadastro prévio seria o último a entrar na fileira de registro. Os idosos, com seus cartões amarelos, são os primeiros a ser atendidos. Muitos deles têm dificuldades para andar e o fazem escorados uns aos outros. É depois do registro que cada um recebe um sabão e toalha para tomar banho – que não é obrigatório. Depois, ao devolver a toalha, ganham uma ficha para almoçar e outra demarcando o número do quarto e o do leito.

Regras Enquanto esperava minha vez, puxei assunto com um rapaz mais ou menos da minha idade, uns trinta e poucos anos, para tentar entender o que enfrentaria. Seu nome é Jean, nascido no Cachoeirinha, na Região Nordeste de Belo Horizonte. “Isso aqui (o abrigo) é o inferno. Só estou aqui porque não tenho mais nada. A pedra (o crack) destruiu minha família e não consegui emprego desde que deixei a prisão em (São Joaquim de) Bicas (na Grande BH), no mês passado”, contou. Ele disse ainda que esta há oito meses sem consumir a droga e que o próximo passo seria largar o cigarro. Aconselhou-me a arranjar um canto para ficar, sem chamar muito a atenção e ir embora logo que o abrigo abrisse, às 7h do dia seguinte. “Aqui não é lugar para ficar muito. Mas o frio está demais lá fora. Não compensa arranjar confusão, porque você pode tomar balão (seu direito de abrigamento é suspenso). Se sair antes da hora, são três dias de balão, se beber, roubar ou usar drogas, são 15 dias. Mas se alguém denunciar a gente acerta lá fora depois”, disse.

O papo serviu para mostrar que há regras internas entre os grupos de ocupantes e que transgredi-las pode ser pior do que uma punição institucional. Como preferi não tomar banho, segui direto para a fila do almoço. No refeitório, pouco se conversa. Do lado esquerdo, a comida é servida em bandejão semelhante ao dos restaurantes populares. Uma carne de porco, arroz, feijão, farofa e beterraba. Um senhor mais velho e alto se aproximou dizendo que não valia a pena brigar por causa de comida e simplesmente entrou na minha frente, sacodindo seu cartão amarelo de idoso. Deixei, porque não queria confusão. Ao ser servido, ele ofendeu o cozinheiro. “Esse jeito que vocês nos tratam faz até mal para a gente na hora de comer”, disse.

Célio Nascimento diz preferir as ruas ao abrigo porque teme contágio de doenças infecciosas(foto: Sidney Lopes/EM/D.A Press)
Célio Nascimento diz preferir as ruas ao abrigo porque teme contágio de doenças infecciosas (foto: Sidney Lopes/EM/D.A Press)
Quando chegou a minha vez, o cozinheiro começou a me insultar. “O cara (idoso) furou a sua frente. A comida é contada, isso vai me f.”. Na hora, lembrei do conselho de Jean para evitar confusão e denúncias. Disse que o deixei entrar na frente porque era idoso. “Você é bom samaritano, então, eu fico como nessa? Vai pegar a ficha com ele?”, respondeu entre palavrões. A tática de não criar confusão foi por água abaixo à medida que todos da fila ficaram me olhando com raiva, pois o cozinheiro deixou de servir enquanto me insultava.

Fui finalmente servido e engoli a comida o mais rápido possível. Resolvi procurar meu leito, num quarto do segundo dos três andares. No térreo, já dormiam os idosos, que comem primeiro e vão para as camas justamente para serem poupados das confusões.

PBH diz controlar conflitos e pragas

Do lado de fora do Albergue Tia Branca, na Floresta, dezenas de pessoas em situação de rua se recusam a deixar as calçadas e viadutos por causa das infestações de insetos e doenças. “Lá dentro não vale a pena, porque tem percevejos, gente doente que tosse em cima de você. Eu não quero adoecer dentro de um abrigo”, disse Célio Nascimento Santos, 43 de anos, que dorme na Avenida Bernardo Monteiro, na região dos hospitais. Segundo o presidente da Sociedade Mineira de Pneumologia, David Koza, os albergues deveriam fazer como nos hospitais e manter os doentes com tuberculose isolados. “A tuberculose é uma doença transmitida pela tosse e secreções. Num ambiente frio, fechado e com muita gente, o risco de transmissão é muito grande. Com o tratamento, num período de 15 dias o doente para de transmitir. Mas se não for feito um tratamento adequado, ele pode voltar a transmitir o bacilo”, afirma o médico, salientando que um dos problemas é o paciente revelar essa condição.

A educadora social da Pastoral de Rua de BH Claudenice Rodrigues Lopes também considera a situação longe do ideal. “A população de rua, atualmente, tem uma concentração de tuberculose maior do que a carcerária. Em parte por conta dessas condições precárias de abrigamento. Quando atendemos na pastoral, muitas pessoas em situação de rua nos mostram as feridas, inflamações e alergias provocadas pelas mordidas de percevejos. E isso só vai se perpetuar se não houver investimentos sérios”, afirma.

A PBH informou que a média de ocupação dos abrigos e albergues tem sido de 80%. Segundo a assistência social, as pessoas em tratamento de tuberculose são acolhidas apenas “após o período de risco de transmissão” de 15 dias. O combate ao percevejos tem sido feito em conjunto com a Fiocruz, salientando que “essa não tem sido mais uma queixa constante de quem tem frequentado o equipamento nos últimos dias”. Quanto às brigas dos grupos por cobertores e alimentação, a administração municipal informou que não recebeu relatos desse tipo de conflito. “Caso haja algum tipo de ocorrência, são tomadas providências, tais como: conversas de conscientização, advertências, e, em último caso, a suspensão temporária. Em cima de cada cama está disponível um cobertor, e os usuários que sentirem necessidade podem solicitar ao segurança mais cobertores”, informa a prefeitura.

Quanto às abordagens a moradores de rua, a Guarda Municipal de Belo Horizonte informou que as faz, “mas não realiza recolhimento de pertences”, apenas em “casos de flagrante delito e em situações que possam colocar em risco a segurança, integridade física dos moradores em situação de rua e de terceiros”.

Espaço disputado no grito

Os corredores até os quartos são muito bagunçados. Colchões e cadeiras de plástico quebradas ficam atiradas no meio do caminho. Nas paredes, há tijolos expostos e muita sujeira. Alguns quartos estavam sem luz. Dos banheiros, os albergados protestavam pelo fato de nem todos os chuveiros terem água quente.

O quarto em que deveria dormir estava iluminado e tinha 14 beliches, sendo apenas um ocupado. Entrei e, ao procurar o número do meu leito, fui alertado pelo abrigado que estava deitado no alto de um beliche: “Tem dono”. Perguntei o que tinha dono. Ele disse que as numerações das camas e quartos não eram respeitadas e que os cobertores já estavam marcados para o grupo dele. Enquanto pensava no que fazer, um senhor de uns quarenta e poucos anos entrou e pegou um cobertor. “Tem dono, coroa. Deixa o cobertor aí, uai”, esbravejou o rapaz do alto do leito. “Marcado onde? Não tem nada disso não”, retrucou o senhor, que deixou o quarto com o cobertor sobre as costas. “Ô coroa folgado, devolve o cobertor!”, gritou o homem do beliche.

Instantes depois, outros dois rapazes apareceram perguntando o que tinha ocorrido. “A gente vai ter de correr atrás de novo por causa da coberta?”, protestou um dos dois. “Não dava pra segurar a coberta aqui não, o cara era grande”, retrucou o homem deitado. “Tem que falar para todo mundo: se pegar a coberta, nós vamos tirar de quem estiver dormindo lá nos seus quartos”, emendou outro rapaz, e a dupla saiu gritando pelo corredor, procurando o homem que roubou os cobertores de que aquele grupo se apossou. Não houve como saber se conseguiram ou se brigaram, porque a gritaria da dupla logo se misturou aos berros de outros pelos corredores. Na hora, me lembrei dos idosos que já dormiam na parte de baixo.

Voltei para o pátio, onde albergados tocavam violão, cantavam, jogavam dominó apostando dinheiro e bebiam cachaça escondido. Já tarde da noite, peguei um cobertor com o segurança e retornei para o segundo andar atrás de um quarto mais pacífico. Os corredores estavam todos com as luzes apagadas, o que trouxe muita insegurança. Deitei numa cama e o medo dos ataques dos percevejos, o cheiro forte de quem não tinha tomado banho e a tosse  constante que poderia ser de tuberculosos me fizeram sair para voltas intermináveis até a porta e num trecho pequeno do corredor. Por fim, o tédio, o frio e o cansaço me fizeram me render à cama, onde fiquei sem pregar os olhos até o dia raiar.


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