Com aquele corpo “de cinturinha de formiga”, foram-se as atitudes e os gestos exagerados, a enciclopédica memória cinematográfica, o diretor e ator de teatro irreverente e um dos grandes críticos de cinema que este país já teve o prazer de ler.
Ronaldo foi um sujeito cuja inquietude logo já não coube na sua Ponte Nova natal. Aos 12 anos, foi aventurar-se na capital. Filho de farmacêutico e professora, dizia que sua infância foi infeliz. Partiu para o mundo.
Apaixonado pelas imagens projetadas nas telas, acompanhava toda a produção e sabia na ponta da língua fichas técnicas dos clássicos de Hollywood. Diretor do 1º Festival de Cinema Brasileiro de Belo Horizonte, nos anos 1960, foi também um dos editores de Claquete, jornal de cinema, e um dos atuantes membros do Centro de Estudos Cinematográficos (CEC). Leitores de Folha de Minas, Diário de Minas, O Sol, Estado de Minas, Jornal da Tarde e Veja que o acompanharam, nesses veículos ou na TV Itacolomi, certamente percebiam a acuidade com a qual resenhava os lançamentos do cinema. “Nunca fui demitido, sempre pedi demissão”, contou-me, certa vez.
Depois de seis anos em São Paulo – “onde se ganha muito dinheiro, mas gasta-se tudo em táxi e pizza” –, retornou a Belo Horizonte. Entregou-se de corpo e alma ao teatro, dirigiu dezenas de peças e encarou autores de peso: Camus, Brecht, Arrabal e Nelson Rodrigues – que ele trouxe, em 1973, a Belo Horizonte para assistir a Beijo no asfalto sob sua direção, no Teatro da Imprensa Oficial. Dirigiu atores que se consagrariam – Marco Nanini, Julia Lemmertz, José Mayer e toda uma geração de atores mineiros.
Personagem de si mesmo e sempre elegante, Ronaldo foi retratado no cinema em mais de uma dezena de filmes como ator, encarnando as mais variadas figuras, ou como ele próprio, em documentário de Patrícia Moran. Sua última performance está no documentário Ronaldo, por favor, dirigido por Vera Fajardo (mulher de José Mayer). "Um filme afetivo", segundo Luiz Otávio Brandão, irmão do artista. "Apaga-se a última estrela de uma geração muito especial", afirmou Luiz Otávio, nesta quarta-feira.
O irmão lembrou o papel de Ronaldo no Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), que foi presidido por ele. Craque da bola, Sócrates produziu uma peça do mineiro: Perfume de camélia.
Ao longo dos anos, sua casa foi se transformando em verdadeiro arquivo.
Intelectual culto e exigente, Ronaldo era ranzinza ao constatar pouca cultura em seu interlocutor. Sentado nos bares da Savassi, olhava para a juventude que desfilava à sua frente e, entre o desejo e o desdém, alfinetava: “Coitadinhos. Nunca leram o grande Machado, Ítalo Svevo, Proust. Nunca se deliciaram com Nelson Rodrigues”. A poesia, Ronaldo amava com fervor. Escreveu vários poemas de boa lavra, mas era, sobretudo um grande orador. Recitava onde estivesse. Com interpretação única, discorria enormes líricas de autores consagrados e de amigos de copo.
Ronaldo morreu, mas soube aproveitar a vida.
Ronaldo Brandão deixa cinco irmãos, vários sobrinhos e dezenas de amigos.
DEPOIMENTO
Um cara generoso
Ronaldo Brandão era, para mim, uma espécie de tia. Daquelas que a gente admira e escuta os casos que a família tem pudor de revelar. Ele não tinha vergonhas e contava histórias incríveis sobre meus pais. Ronaldo dizia que era a mãe da minha mãe. Depois, chamei-o de vó e ele não gostou. Tinha então uns 60 anos, mas era demasiadamente jovem para ser avó.
Conheci Ronaldo antes de ser concebido. Ele me contou que emprestava seu apartamento na Rua da Bahia para meus pais, então namorados, se encontrarem às escondidas ao som de Led Zeppelin. Conferi a informação com os dois e soube, entre risos, que era verdade. Alcoviteiro, chegou a afirmar que eu tinha sido concebido em sua cama. Mas chequei com os responsáveis e, desta vez, a informação não procedia. Era apenas um arroubo afetivo e exagerado de ator.
Algumas vezes, visitava-o em seu “escritório”, algum bar na Savassi que mudava de endereço de tempos em tempos. Nunca me cansei de ouvir sua erudição, pois aprendia sobre filmes, livros e me encantava com as histórias loucas de uma Belo Horizonte divertida. Acabamos nos tornando amigos e ele sempre foi generoso. Era um sujeito ímpar, de frases prontas, francas e lapidares. Vou guardar a imagem de Ronaldo, de óculos redondos vermelhos, no Café Urrubu, na Rua Carangola, recitando poesia de pé sobre a cadeira e, como sempre, brilhando. Foi-se uma estrela. (PPF).