Jornal Estado de Minas

Milton Nascimento homenageia compositor Fernando Brant

Milton diz que amizade com Brant tornou sua vida "mais linda" e que ficou "apavorado" ao saber da morte do letrista

Márcia Maria Cruz Pedro Cerqueira Landercy Hemerson

A potência inconfundível da voz de Milton Nascimento se fez calma na tarde em que ele se despediu de seu principal parceiro musical.

Ao chegar para o adeus a Fernando Brant, um dos maiores intérpretes da música popular brasileira estava visivelmente abatido. Milton entrou no Palácio das Artes, no Centro de Belo Horizonte, por volta das 13h30 e se manteve em silêncio. Cercado por repórteres, sinalizou que não falaria. Naquele momento, os versos escritos por Brant em Travessia, que, há 48 anos, na voz do rouxinol, impulsionaram a carreira de ambos, poderiam bem traduzir a despedida: “Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver”.


Milton deu abraços longos e conversou com as filhas e com outros familiares de Brant. Logo depois, o cantor concordou em falar com os jornalistas. Relembrou o início da parceria com Brant, a importância do poeta para sua carreira e também falou da amizade que construíram.


Os sonhos feitos de brisa daqueles meninos atravessaram décadas e se assentaram nos corações de tantos e tantos fãs Brasil afora. Mais que parceiros, eles foram amigos muito próximos.

“Guardo lembrança do Fernando, de toda minha vida. Não é só um pouquinho aqui ou um pouquinho ali. Ele faz parte da coisa mais séria da minha vida, que eu aprendi com meus pais: a amizade. Desde que a gente se conheceu, foi sempre uma coisa muito forte. Cada coisa que acontecia nas nossas vidas, a gente compartilhava. Minha vida não teria sido tão linda se não fosse esse tipo de amizade que surgiu, não só do Fernando como de outros amigos de Belo Horizonte.”

TRAVESSIA Milton lembrou que Brant não aceitou de imediato o pedido para a primeira parceria entre eles, Travessia, que ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção Popular em 1967. “A gente era tão amigo que fui pra São Paulo e estava compondo numa tarde três músicas: Pai Grande, Morro Velho e mais uma que falei ‘Essa não vou fazer a letra’. Fiquei pensando: ‘Tem um amigo meu em BH que quero que faça esta letra’. Vim para BH e falei com Fernando: você tem que fazer uma letra para uma música minha. Ele falou: Você está louco?! Passados meses, ele fez uma das coisas mais importantes das nossas vidas, que foi Travessia.”


Sobre essa parceria inaugural, Brant já havia declarado, em entrevista: “Impulsionou nossa carreira. Com certeza, se não tivesse ocorrido a premiação, eu poderia abandonar aquela primeira experiência de letrista. Era algo fantástico, os artistas que a gente admirava dos discos e do rádio estavam todos lá, agora na condição de colegas. O negócio foi tão forte, que antes de assinar contrato com uma gravadora brasileira, o Milton fechou com a norte-americana EMI Records.

Com isso, me entusiasmei e o Milton me mandou outra melodia para colocar letra. Era a música Outubro, que entrou no primeiro disco com Travessia. Fiquei tenso, pensando que, no mínimo, teria de ser do mesmo nível da primeira composição. Outubro é uma outra visão de Travessia”.

A notícia de falecimento do parceiro pegou Milton de surpresa. “Fui para a cama muito apavorado e, às 5 horas da manhã, já estava na estrada (do Rio de Janeiro para Belo Horizonte).” Milton não quis destacar uma canção entre as tantas que fez com o parceiro, mas deixou clara a sintonia que existia entre eles. “O legado que ele deixa são todas as coisas que escreveu, as poesias, as palavras, o que a gente viveu juntos, o que não vivemos juntos – parcerias que ele fez com muitas outras pessoas. É o que há. Fernando deve estar num lugar bem especial numa hora dessas”, afirmou Milton.

 

MICROFONE Ele também homenageou o amigo por meio das redes sociais, postando uma despedida virtual antes de viajar para a capital mineira: “As coisas que teria para dizer sobre o Fernando estão escritas em nossas canções e descritas nas vozes das pessoas que as colocam em suas bocas, na emoção mais profunda que toca o coração. Não estou falando somente de nós, que temos o privilégio do microfone, mas sim de todos juntos, seja no encontro generalizado de vários olhos e sentimentos, mas também no íntimo de cada um. Do amor de irmãos, de amigos, de amantes e companheiros.

É pureza rara e muita beleza. Quando diz uma coisa, ele acredita mesmo. Alma gêmea dos magos, alimento das estrelas, som. Mais que tudo, amigo”.

 

HOMENAGEM DO EM
O Estado de Minas publicou ontem no banner de sua página no Facebook uma homenagem ao compositor Fernando Brant, além de postar um tributo. Com a caricatura do músico, assinada por Quinho, e os versos “Sou do ouro, sou vocês, sou do mundo, sou Minas Gerais”, extraídos da canção Para Lennon e McCartney, o post foi compartilhado centenas de vezes por internautas. O mesmo ocorreu com o banner, que trazia o verso inicial de Travessia (Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver), ao lado da imagem de seu autor. Escrita em 1967, Travessia marcou o início da parceria entre Brant e Milton Nascimento.

 

REPERCUSSãO
“Quero deixar meus sentimentos aos familiares, amigos e fãs da música e da poesia de Fernando Brant, lembrando um dos seus mais conhecidos versos: ‘Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão, todo artista tem de ir aonde o povo está’. Fernando cantou a nossa geração, o nosso povo e os nossos sonhos.”
DILMA ROUSSEFF,
presidente da República

“Estou muito tocado, muito emocionado, porque o Fernando Brant é um homem da minha geração. Ele cresceu junto comigo, tivemos os mesmos sonhos, as mesmas angústias, as mesmas esperanças. Deixou um legado inestimável na arte, na música popular, mas também na política. Sempre foi um democrata, lutou conosco pela redemocratização, então vai deixar uma lacuna enorme.”
FERNANDO PIMENTEL,
governador de Minas

“Uma perda inestimável. Fernando Brant carregava consigo a alma mineira e a carregava por todo o Brasil, na sua singeleza e profundidade. Fernando era um homem público na dimensão maior que isso pode expressar”
AÉCIO NEVES,
senador (PSDB-MG)

“Minas perde parte de sua música, de sua história e de sua cultura com a morte de Fernando Brant. Ele soube como poucos falar do nosso jeito. Com o Clube da Esquina, descreveu a igreja, um muro branco, um voo pássaro. Fica-nos seu legado, sonoro e poético, “repertório de vida e canções”.
Antonio Anastasia,
senador (PSDB-MG)

“Fernando Brant era um gênio. Foi e sempre será um ícone e referência para a música, a poesia e a literatura. Mas, mesmo sendo iluminado com tanto talento, que saiu das nossas Minas Gerais para ganhar o mundo, nas vezes em que tive o privilégio de estar com ele, sempre admirei a sua simplicidade, o seu jeito afável, equilibrado, a personalidade discreta, a voz serena que tanto nos ensinava.”
MARCIO LACERDA,
prefeito de Belo Horizonte


Carinho do time do coração


O América Futebol Clube, time do coração de Fernando Brant, homenageou ontem o compositor, durante o jogo contra o CRB, pela série B do Campeonato Brasileiro, no estádio Independência. Os jogadores entraram em campo com uma camisa confeccionada especialmente para a partida, trazendo nas costas o nome de Brant e na frente seus versos “quando você foi embora, fez-se noite em meu viver”, da música Travessia, uma de suas mais famosas composições, em parceria com Milton Nascimento.

A página do clube na internet observou que a “nação americana” está de luto e lembrou que é de autoria de Brant o hino não oficial do clube: “Meu coração é verde e branco/E assim, o jogo está em minhas mãos/Sou americano, sim, desde menino/Eu grito é gol, é gol, é gol/Para sempre vou viver cantando/É do América, o meu coração/É do América, o meu coração…” A composição é uma parceria de Brant e Tavinho Moura.

Além de torcedor fervoroso, Fernando Brant era conselheiro do América. Ele herdou de seu pai, o juiz Moacyr Pimenta Brant (1911-2004) a paixão pelo clube, que contagiou ainda grande parte da família Brant. Fernando contava em roda de amigos que sua composição Canção da América, mundialmente conhecida, era na verdade uma homenagem ao clube do coração: “no fundo, no fundo, é a canção do América. Amigo é coisa para se guardar... e o América também é para se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração”, dizia, bem-humorado.

Parentes do compositor, mesmo aqueles que não eram americanos, sabiam que, em dia de jogo do time em Belo Horizonte, haveria encontro de família. “Era uma festa da família que, com a vitória, ficava ainda melhor. O Fernando não dispensava a cerveja e o bolinho de feijão”, disse a sobrinha Ana Clara Brant, que é jornalista, assim como o tio, e repórter do Estado de Minas. Um dos grandes momentos do torcedor Fernando Brant foi o título do Mineiro de 1993, depois de um jejum de 20 anos do América sem uma conquista estadual. “Ele ligou para todos da família. Até para quem estava no exterior, para comemorar.”

Tristeza no Clube da Esquina

Vários registros sobre o Clube da Esquina narram a decepção dos visitantes, principalmente estrangeiros que gostam do movimento musical e que fizeram questão de incluir a capital mineira em seu roteiro só para visitar o tal clube. O motivo? Eles imaginavam que iriam encontrar uma sede onde os artistas se reuniam, talvez assim como Abbey Road está para os Beatles. Mas o máximo que se encontra na esquina entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis, no Bairro Santa Tereza, é uma simples placa de metal que identifica aquele lugar, ao melhor estilo “museu aberto”. Se conseguirem enxergar que a importância desse movimento musical está fortemente ligada a características que podem (ou podiam) ser encontradas em qualquer esquina, como originalidade, espontaneidade e simplicidade, talvez esses visitantes se consolem.

Na tarde de ontem, a esquina do clube tinha o ar de tristeza de Solange Borges, irmã de Lô Borges. Solange recordou da algazarra que Fernando e a turma do Clube na Esquina faziam naquele pequeno espaço. Jogavam bola, desenhavam no chão, conversavam, assistiam ao pôr do sol no horizonte da Rua Paraisópolis, mas, sobretudo, tocavam e compunham canções. Situada no número 136 da Rua Divinópolis, a casa dos Brant era um verdadeiro QG da turma, onde, durante a ditadura, se abrigavam da polícia e da censura.

A tradutora Vera Faria Bernardes, de 63 anos, que se lembra de Fernando Brant dos tempos em que ambos estudavam no Colégio Estadual Central, foi ontem até à famosa esquisa, como uma forma de homenagear Brant. “Éramos contemporâneos e, por coincidência, estivemos nos mesmos pontos geográficos de Minas Gerais, ao mesmo tempo. Assim como ele, sou do Sul de Minas, passei por Diamantina e, depois, vim para Belo Horizonte.” Brant nasceu em Caldas, em 1946. Aos 5 anos, mudou-se para Diamantina e, aos 10, para Belo Horizonte..