Jornal Estado de Minas

Pescador diz ter colocado jacarés na Lagoa da Pampulha

Morador das barrancas do Rio São Francisco e um dos mais antigos integrantes da colônia de Três Marias garante: foi ele quem soltou os répteis, ainda filhotes, na represa de BH

Mateus Parreiras

Norberto pesca há 54 anos no São Francisco e diz que jacarezinhos soltos na lagoa vieram do Rio Araguaia - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press


Discretos e arredios, avistados quase sempre quando tomam banho de sol, os jacarés que vivem na Lagoa da Pampulha e despertam a curiosidade dos frequentadores do cartão-postal de Belo Horizonte nunca tiveram sua origem determinada com exatidãoPelo menos até agora, quando surge uma história que poderia explicar a presença dos insólitos personagens em um lago urbano artificial encravado no meio da terceira maior metrópole do Sudeste brasileiroO enredo vem das palavras de um dos personagens que integram o imaginário das barrancas do Rio São Francisco, conhecido no Brasil e no exterior por defender as causas do Velho ChicoNorberto dos Santos, de 65 anos, um dos mais antigos pescadores da colônia de Três Marias, admitiu ter introduzido os répteis, ainda filhotes, na lagoa da capitalConhecido pelo apelido carinhoso de “Velho do Rio”, ele sobrevive há 54 anos fisgando peixes no Rio da Integração NacionalSem qualquer constrangimento, o homem simples e de fala mansa garante que essa não é uma história de pescador: ele conta que capturou 25 pequenos jacarés em uma pescaria no Rio Araguaia, em Mato Grosso, em 1968, e que depois soltou os bichos na Pampulha“Até hoje, quando leio nos jornais ou vejo na TV que um dos jacarés apareceu, penso assim: olha lá um dos meus”, diverte-se.

Em sua casa na beira do São Francisco, no município de São Gonçalo do Rio Abaixo, vizinho a Três Marias, na Região Central de Minas, o pescador lembra da história com um sorriso largo, sentado em um banco de madeira ao lado as netas“Tudo começou quando eu tinha 18 anosO preço do peixe estava em baixa e um amigo de pescaria me chamou para trabalhar em Belo Horizonte, na Casa Arthur Haas, em frente à Igreja da Boa Viagem”, lembraPorém, como ele chegou um dia depois do combinado, perdeu o emprego e teve de trabalhar em uma marcenaria“Sabe como é, né? Pescador é muito folgado
Perdi um emprego, mas arranjei outro, ali perto da Avenida Alfredo Balena (Região Hospitalar)Mas gostava mesmo era de pescar e logo a gente organizou uma pescaria para o Araguaia.”

Arredios, animais são vistos tomando sol em diferentes pontos da represa. Nunca foram registrados ataques - Foto: Renato Weil/EM/D.A Press 14/11/06
Era então um Brasil bem diferente, em que ainda não havia leis ambientais rígidas ou consciência tão difundida“A gente ia armadoDa viagem, eu trouxe também 20 pacas conservadas na gordura, além de muitos peixesA polícia não ligava para isso”, afirmaFoi em uma lagoa marginal que estava secando, e que por isso poderia ter muitos peixes fáceis de fisgar, que ele encontrou os jacarés“Quando chegamos à lagoa, os jacarés grandes fugiram correndo e ficou aquele tanto de jacarezinhos nadando no meio dos nossos pésResolvi pegar alguns e levar para a casa do meu patrão, no Bairro Santa Efigênia, em BH”, conta NorbertoO presente agradou ao chefe, que despejou os pequenos répteis na piscina que tinha no quintalMas o tempo passou e criar os animais se provou mais difícil do que parecia
“A gente jogava peixe, pedaços de carne e eles não comiam nadaO patrão então ficou com dó, achando que iam todos morrer, e foi então que sugeri soltar os bichos na PampulhaA Avenida Pedro II era de uma pista só naquela épocaFomos por lá, paramos o carro e despejamos os jacarés na lagoa”, lembra.

PAPO AMARELO De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte, os cerca de 20 crocodilianos que hoje nadam no cartão-postal à sombra das edificações de Oscar Niemeyer são da espécie jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris), muito comum em Minas e  encontrada no país do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, com populações também em outros países sul-americanos, como Argentina, Bolívia, Paraguai e UruguaiEm BH, nenhum registro de ataques a humanos ou a outros animais foi registrado, apesar dos boatos de que as capivaras seriam o alimento predileto dos bichosNa natureza isso não ocorre, de acordo com o biólogo responsável pelo Setor de Répteis e Anfíbios da Fundação Zoobotânica da capital, Luís Eduardo Coura“Não que um jacaré adulto não seja capaz de comer um filhote de capivara, mas essa não é a dieta normalAs histórias de ataques a cães também são improváveisMas é certo que os jacarés estão conseguindo boa fonte de alimentação para se desenvolverAcredito que a alimentação deles possa ser sobretudo dos peixes da lagoa”, disse.

Na Pampulha, há quem já tenha encontrado com um dos jacarés e até quem duvide de sua existência“Vi um deles nos jardins do Museu de Arte da Pampulha, há um ano, enquanto corria pela orlaUma porção de gente estava perto para ver e o animal nem se mexeuFicou só tomando solNão acho que seja perigoso e acredito que possa ter sido, sim, solto por alguém que o criava”, afirma o médico-veterinário Leandro Geraldo da Silva, de 37 anosO aposentado Sebastião Ferreira dos Santos, de 68, diz ter visto vários, inclusive um maior, que considera ser “o pai de todos”“Vi o mais velho aqui (perto da Associação Atlética Banco do Brasil), metade do corpo para dentro da lagoa e metade para foraNão são animais que chegam perto nem que trazem perigo, desde que você fique fora da água”, diz, cautelosoO médico Thiago Franco, de 36, sempre passeia pela orla com seus cães e nunca viu um dos répteis“Não duvido que existam, porque muita gente diz ter vistoMas fico na dúvida, por causa desse aumento da população de capivarasSerá que eles não as comem?”, indaga.

 

Muitas teorias sem DNA

A história do pescador Norberto dos Santos não é a única que reclama a “paternidade” dos jacarés da Lagoa da PampulhaComo seu aparecimento já se tornou lenda urbana na capital mineira, ao longo do tempo várias teorias  surgiram nos jornais e recentemente em blogs e redes sociaisUma das mais difundidas é a de que ocorreu uma tempestade na capital mineira e o Córrego São José, que passa dentro do Zoológico, teria inundado recintos de animais, carregando jacarés para dentro da Pampulha, onde o manancial desembocaEssa suposição, no entanto, é considerada fantasiosa pelo biólogo responsável pelo Setor de Répteis e Anfíbios da Fundação Zoobotânica de Belo Horizonte, Luís Eduardo Coura“Mesmo no início, quando o zoológico não era uma fundação e tinha menos estrutura do que hoje, nunca foi registrada fuga de qualquer espécime, por isso dá para dizer que os jacarés da Pampulha não vieram de dentro do zoo”, afirma.

Outra teoria é de que um biólogo teria trazido ovos de jacaré para uma estufa no Horto, na Região Leste, e que esses teriam eclodido e os animais, fugido para um pequeno lagoCom as chuvas, teriam escapado para os córregos da Bacia da Pampulha e acabado na lagoa“As teorias de que os jacarés tenham sido introduzidos na Pampulha podem ter fundamento, sim, mas como se trata de uma espécie comum em Minas Gerais, pode muito bem ter ocorrido de os animais terem descido por riachos e córregos até chegar à Pampulha, onde encontraram um ambiente favorável para se instalar”, disse Coura.

De acordo com o Ibama, os jacarés da Pampulha não são monitorados, por serem considerados animais silvestres em ambiente naturalPortanto, não há qualquer investigação sobre sua origem ou por quem, porventura, os tenha levado para a lagoaAinda de acordo com o órgão, o instituto não recebeu nenhum pedido da Prefeitura de BH para manejo dos jacarés.

O que diz a lei


O ato de transportar um animal da fauna silvestre entre estados ou cidades é considerado crime ambiental, assim como pescar ou caçar esse exemplar, de acordo com o artigo 29 da Lei 9.605, de 1998, a Lei dos Crimes AmbientaisA pena prevista é de seis meses a um ano de prisão e multa para quem matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a permissão obtidaIncorre nas mesmas penas quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural, vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, usa ou transporta ovos, larvas ou espécimes, bem como produtos e objetos dela originários, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.


- Foto: Ana Cláudia Parreiras de Freitas/Divulgação 1/1/04
Jacaré-do-papo-amarelo


Nome científico    Caiman latirostris
Expectativa de vida    50 anos
Dieta    Carnívora (insetos, peixes, crustáceos, pássaros e pequenos mamíferos)
Hábitat    Florestas tropicais em lagoas, lagos e rios.
Curiosidade    O nome da espécie vem da coloração amarelada que o papo dos machos adquire na época do acasalamento
Estado da espécie    Pouco ameaçada (esteve sob risco até 2002, ano em que a criação para retirada de couro e carne permitiu que o número de espécimes selvagens aumentasse)
Fonte: União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais

Assista: pescador conta como colocou jacarés na Lagoa da Pampulha