Jornal Estado de Minas

Nossa história: mestre Valentim, o mineiro sem fronteiras

Nascido no Serro há 270 anos, educado em Portugal e com grandes obras no Rio de Janeiro, mestre Valentim foi um dos maiores artistas do período colonial, comparado a Aleijadinho

Gustavo Werneck
Busto de mestre Valentim no Passeio Público, no Rio de Janeiro: para especialistas, o mineiro era um artista avançado para seu tempo - Foto: Raul Ribeiro/Divulgação
O Brasil lembrou em novembro o bicentenário de morte do mestre do barroco Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1737-1814), e já tem outro mineiro importante a ser reverenciado. Desta vez, serão os 270 anos de nascimento do escultor, entalhador, arquiteto e urbanista Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), natural do Serro, no Vale do Jequitinhonha, e ainda pouco conhecido no estado natal. Para estudiosos da arte colonial brasileira, o mineiro, que viveu na antiga Vila do Príncipe até os três anos, morou em Portugal e depois se estabeleceu na capital fluminense, é considerado o “Aleijadinho do Rio de Janeiro”, com trabalhos em pedra (mármore e granito), metal e madeira, alguns de destaque no Jardim Botânico da cidade.

“Mestre Valentim era um artista avançado para seu tempo e até hoje é citado apenas por quem conhece história da arte com profundidade. Com a comemoração dos 270 anos do seu nascimento, temos uma excelente oportunidade para os brasileiros conhecerem seu legado”, diz o restaurador e historiador Carlos Magno de Araújo, de São João del-Rei, na Região do Campo das Vertentes, autor de pesquisa sobre artistas que trabalharam nas Gerais nos séculos 18 e 19. A professora de história da arte da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Adalgisa Arantes Campos, autora do livro Arte sacra no Brasil colonial, também enaltece o autor de obras públicas e religiosas.

“No Brasil, Mestre Valentim atuou especificamente no Rio, trabalhando com um barroco tardio, o rococó, e o clássico”, diz Adalgisa, explicando que o classicismo, que chegou oficialmente ao Brasil com a missão francesa em 1816, se caracterizava pela harmonia, simetria, serenidade das expressões, sequência rítmica e valores greco-romanos. “O filho ilustre do Serro teve formação portuguesa e clientela no Rio de Janeiro, que era a capital”, afirma a professora. Na capital fluminense, Valentim foi autor do projeto original do Passeio Público, primeiro jardim aberto à população da cidade, que guarda o busto do artista em bronze. E mais: construiu chafarizes e fontes para abastecimento da população e das embarcações que ancoravam no porto e trabalhou nas igrejas de São Francisco de Paula, Santa Cruz dos Militares, Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, Mosteiro de São Bento e Ordem Terceira do Carmo.

Minas não tem obras do mestre Valentim, apenas uma cópia, feita do molde original, inaugurada no início do mês no Museu Casa dos Ottoni, no Serro.
Mas muita gente pôde conhecer o traço do mestre, no ano passado, na mostra Barroco Itália-Brasil – Prata e Ouro, na Praça da Liberdade. Na ocasião, estiveram expostas peças representando os evangelistas São João e São Mateus, pertencentes ao acervo do Museu Histórico Nacional, com quase dois metros de altura, em madeira, que ornamentavam a fachada da Igreja de Santa Cruz dos Militares, no Centro do Rio.

ALÉM-MAR Filho de um português contratador de diamantes e de uma negra, o mulato Valentim foi levado pelo pai, em 1748, a Portugal, onde ficou até os 25 anos. Em terras lusitanas, aprendeu o ofício de escultor e entalhador. O nome do artista aparece pela primeira vez como entalhador na obra de decoração da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em 1772, como discípulo de Luís da Fonseca Rosa. A talha dourada sobre fundo claro do retábulo-mor é amplamente decorada com motivos rococós como guirlandas, buquês de flores, laços e cabeças de querubins. Os anjos-meninos se caracterizam pelo rosto arredondado, feições levemente amulatadas, bochechas e olheiras marcadas, lábios com contornos definidos, pescoço grosso e curto, olhos saltados e caídos, cabelos abundantes e fios marcados.

Na capela do noviciado da ordem, cuja decoração foi executada entre 1773 e 1780, Valentim apresenta todos os elementos de seu estilo. Trata-se de um salão de planta retangular e teto abobadado revestido de talha dourada sobre fundo branco, formando uma unidade decorativa ímpar. No âmbito da arte civil, Valentim foi responsável tanto por obras de embelezamento público quanto de saneamento e abastecimento de água. Os estudiosos ressaltam que, de todos os projetos, o mais marcante é o conjunto formado pelo Passeio Público, além do Chafariz das Marrecas, de 1785 e destruído em 1896. Neste, ele se reportou às ideias iluministas de bem-estar, civilidade, higienização e progresso. Em 1789, Valentim trabalha na reconstrução do prédio do Recolhimento do Parto, que sofrera um grande incêndio.

RESTAURAÇÃO Quatro esculturas de autoria de mestre Valentim – as primeiras obras de arte fundidas no Brasil – estão sendo restauradas no Jardim Botânico do Rio. São elas Eco, Narciso e duas aves pernaltas, esculturas originalmente projetadas para o Chafariz das Marrecas e o Chafariz do Jacaré. No século 19, as fontes serviram para abastecer a cidade de água e embelezar o Passeio Público.
Datadas de 1785, as peças foram produzidas na Casa do Trem, local onde eram confeccionados e reparados os armamentos na época, que hoje integra o conjunto arquitetônico do Museu Histórico Nacional. De acordo com informações da instituição, as esculturas se encontram deterioradas pelo tempo e umidade. O restauro poderá ser acompanhado pelo público, num ateliê aberto, a partir do próximo dia 13.

LINHA DO TEMPO

1745

Valentim da Fonseca e Silva nasce na Vila do Príncipe, hoje Serro, no Vale do Jequitinhonha. Era filho de um português contratador de diamantes e uma negra

1748

Com três anos, Valentim segue com o pai para Portugal, onde aprende os ofícios de escultor e entalhador

1770

Com 25 anos, Valentim retorna ao Brasil e se estabelece no Rio de Janeiro, com loja, oficina e residência

1772

Até 1800, trabalha na decoração interna da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, no Rio, na qual projeta e executa capela-mor, obras do trono e talhas

1789

Trabalha na reconstrução do prédio do Recolhimento do Parto, no Rio, que fora alvo de incêndio. O local amparava mulheres que precisavam dar à luz seus filhos de maneira discreta

1795

Trabalha no Chafariz das Saracuras, para o pátio interno do Convento da Ajuda, no Rio, por encomenda das irmãs clarissas. O prédio foi demolido em 1911

- Foto: GILMARA PAIXÃO/PREFEITURA DO SERRO/DIVULGAÇÃO 1913

Inauguração da placa comemorativa do centenário da morte de mestre Valentim, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, no Rio, onde foi sepultado aos 68 anos

 

HOMENAGEM NO SERRO


No dia 16, conforme mostrou o Estado de Minas, a terra natal do Mestre Valentim homenageou o seu filho ilustre. Na presença de autoridades, o Museu Regional Casa dos Ottoni inaugurou uma cópia em bronze de uma escultura – Aves pernaltas –, instalada inicialmente no Convento das Clarissas, no Rio de Janeiro (RJ), depois na Praça Cardeal Arcoverde e no Passeio Público até ser transferida para o Jardim Botânico, na mesma cidade. A cópia da escultura foi feita na década de 1960 pelo fundidor Zani, tendo sido agora adquirida pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), com o patrocínio da CBMM..