“A gente não pode errar mais com esta criança. Confiamos em vocês.” A sentença do juiz Fernando Lamego Sleumer, de 33 anos, da comarca de Capelinha, resumia a missão dada ao casal formado pelo jornalista Gilberto Scofield Júnior, de 49, e pelo corretor de imóveis Rodrigo Barbosa, de 33: cuidar de Paulo Henrique, de apenas 4 anos, bem sofridos. Em seu curto tempo de vida, depois da morte da mãe, vítima de alcoolismo, a criança de origem negra foi abandonada pelo pai, acolhida em um abrigo, adotada por um mulher de quem sofreu maus-tratos, devolvida ao abrigo e rejeitada por dois outros casais até ganhar os dois pais adotivos com os quais vive desde outubro nas Laranjeiras, Bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro.
O que poderia ser apenas um final feliz ou o começo de uma nova vida, porém, virou polêmica, sobretudo diante da decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que acaba de desarquivar o texto do Estatuto da Família (Projeto de Lei 6.583/2013), que restringe a casais heterossexuais a adoção de crianças como Paulo Henrique. Em entrevista ao Estado de Minas, o juiz Fernando Sleumer se posicionou contra a restrição e defendeu os direitos dos casais homoafetivos de participar dos processos legais de adoção, salientando que o caso de Capelinha pode servir de exemplo para romper preconceitos.
“Minha opinião pessoal e posição como magistrado, respaldada pela própria evolução da jurisprudência dos tribunais superiores, é a de que casais, homoafetivos ou não, devem ter seus direitos resguardados com absoluta identidade, respeitada a preferência legal das listas de habilitados para adoção, sem discriminações de orientação sexual”, afirmou Fernando Sleumer, que nasceu em BH e ingressou na magistratura em setembro de 2010.
Pai adotivo, Gilberto lança mão da história de Paulo Henrique para criticar a proposta que visa a oficializar como unidade familiar apenas núcleos formados por homens e mulheres. O juiz Fernando Sleumer concorda: “O caso da adoção de uma criança por um casal homoafetivo é o rompimento de obstáculos motivados pelo preconceito que ainda permeia nossa sociedade e que envolve, sobretudo, discussões políticas e religiosas que o magistrado não deve, jamais, sobrepor à primazia dos interesses do menor”.
O juiz salienta que magistrados das varas da Infância e da Juventude no Brasil verificam que casais ainda priorizam a adoção de crianças de pouca idade ou recém-nascidas. “Ou seja, a cada dia as chances de uma criança ser adotada diminuem e, muitas vezes, a triste realidade é de que o menor fica abrigado até os 18 anos, quando é colocado nas ruas, sob a dependência de programas públicos para obtenção de um trabalho para se sustentar, sem qualquer apoio ou referência familiar.”
Para o magistrado, a questão de gênero não pode ser colocada como fator determinante na adoção. “Será que o menor adotado pelo casal homoafetivo está melhor e mais feliz na situação atual ou abrigado, a cada dia com menos perspectivas de ser acolhido por um núcleo familiar?”, questiona o juiz de Capelinha. Fernando Sleumer confirma que o menino Paulo Henrique “foi rejeitado por outras pessoas previamente habilitadas nas listas de adoção, inclusive com situações de violência que colocaram o menor em risco”.
SEM DIFERENÇAS Gilberto Scofield Junior ressalta que o caso do menino do Vale do Jequitinhonha reforça a constatação de que crianças podem ser adotadas e receber uma boa educação independentemente da orientação sexual dos pais adotivos.
A própria história de Paulo Henrique reforça a tese. Seis meses depois de ser deixado no Lar Mãe Dolores, em Capelinha, aos 2 anos, o menino foi adotado por uma mulher solteira e levado para São Paulo. Posteriormente, a mãe adotiva foi denunciada por maus-tratos e, por determinação da Justiça, o garoto voltou ao abrigo, relata Sandra Mara Correa, diretora da instituição, que fundou há 14 anos. Atualmente, o abrigo assiste 20 crianças e adolescentes com a ajuda da comunidade e apoio das prefeituras de Capelinha, Água Boa e Angelândia. Desde a fundação, já passaram pelo abrigo cerca de 500 crianças e adolescentes, dos quais 30 foram adotados via cadastro nacional.
Ela relata que, após o retorno de Paulo Henrique de São Paulo, estiveram na instituição dois casais, brancos, para conhecer o menino. “Um deles trouxe até presentes para a crianças, mas disse que não se interessou pela adoção. O outro casal levou o menino para passear pela cidade para ver como seria a reação dele. Depois, foi embora e ficou de voltar, mas não retornou”, disse Sandra Mara.
Os tons da discriminação
O jornalista Gilberto Scofield Junior explica que não há separação entre ele e seu companheiro quanto ao papel de cada um na vida de Paulo Henrique. Contando com o auxílio de uma diarista, os dois dividem tarefas. “Na terça, eu levo para a natação e ginástica. Na quinta, é a vez do Rodrigo.
Gilberto diz que já teve que enfrentar situações que ele associa ao racismo. Recentemente, conta, seu companheiro chegava com o menino ao prédio onde moram e se deparou com outra moradora na portaria. “Quando ela o viu, barrou e disse: ‘Menino, você não mora aqui! Vá embora!’ O Rodrigo chegou depois e explicou que ele era filho dele”, relata. “Tenho certeza de que, se fosse uma criança branca, não teria problema”, observa.
O responsável pela adoção relata em outro episódio, em uma padaria, onde o menino se debruçou sobre o freezer. “Veio o gerente, dizendo: ‘O que você quer garoto? Saia daqui.’ Aí, eu falei: “Sair por quê? Ele é meu filho.’”. Gilberto disse que o funcionário ficou sem graça e argumentou que às vezes as crianças deixavam o freezer aberto, o que fazia o sorvete derreter.
E como o menino está sendo criado sem a figura materna? É o próprio Gilberto quem responde: “No início, toda figura feminina que aparecia ele chamava de mãe. A gente contou que a mãe dele havia morrido – o que é verdade – e que agora, para compensar, ele tinha dois papais. Com o tempo, ele foi se acostumando a essa realidade de núcleo familiar diferente e, hoje, tudo está perfeito”..