Pensando bem, melhor não mencionar explosivos e afins por aqui. Pode ser arriscado. No roteiro, o diretor Damián Szifrón mostra que existe uma linha tênue entre a civilização e a barbárie, contando seis casos de pessoas que perdem totalmente o controle ao enfrentar situações de trânsito, traição e tragédias pessoais. Suas reações são elevadas à máxima potência. Inspirada nos relatos de selvageria, a equipe do Estado de Minas ouviu quatro personagens bem reais, incluindo alguns que se misturavam à plateia do Belas Artes, na última terça-feira.
Com a condição de que o sigilo sobre o nome fosse mantido, um advogado, uma publicitária, uma autônoma e uma engenheira concordaram em revelar aqui os seus piores momentos de fúria. Outros prestaram depoimentos, mas pediram para que jamais fossem publicados. Nenhum dos casos relatados atinge o grau de violência explícito do filme estrangeiro. Não chegam nem perto, aliás. “Ainda bem. Na tela do cinema é onde nosso desejo mais íntimo pode ser realizado. Na vida real, dar vazão à pulsão (instinto) seria deixar sobressair o lado animalesco humano”, traduz a psicanalista Brígida Gonçalves de Sousa.
ANIMAIS
Curioso é que, entre as pessoas ouvidas, algumas chegaram a se comparar a animais ao contar sobre os ataques de loucura. “Virei bicho!”, disse a publicitária M., de 25 anos, moradora da Região da Pampulha.
“Na atualidade, a maioria das pessoas está sobrecarregada de eventos disparadores de distúrbios. Às vezes, basta alguém olhar atravessado para fazer surgir o instinto de defesa”, explica a especialista em segurança do trabalho Ivone Baumecker. Segundo ela, as doenças osteomusculares e psíquicas são as principais causas de afastamento de empregados na Previdência Social. “No trabalho, as pessoas estão sendo constrangidas a fazer mais do que dão conta, em um tempo mais curto e com recursos limitados. Além disso, têm de se superar o tempo todo e estar sempre disponíveis com as novas mídias (e-mail e redes sociais). Elas precisam saber tudo o que acontece e se posicionar sobre tudo”, completa.
Se você hoje der o azar de bater o carro, é bom estar preparado para a reação do(a) motorista do veículo alheio.
ARREPENDIMENTO
“Quando ouço histórias deste tipo, vejo que as pessoas confessam ter ficado arrependidas depois do escândalo. Pois eu não. Sinceramente? Me dá um alívio danado, saio rindo, mais leve”, diz a engenheira N. Entretanto, ela e os outros manifestam vontade de conseguir ter controle sobre os acessos de raiva. A ‘turma do pavio curto’ tenta transformar o episódio dramático em humor, fazendo piada sobre o ocorrido. Outra dica é fazer exercícios físicos, como por exemplo a corrida. “É preciso aprender a se soltar. Algumas terapias indicam socar travesseiros ou a gritar sozinho dentro do carro. Se você der meia hora de porrada no saco do boxe, mentalizando a cara do seu chefe, certamente vai evitar brigar com ele”, brinca o advogado do Bairro Anchieta.
Existe ainda o perfil do impulsivo convicto, caso de um grande empresário e morador de Nova Lima, na Região Metropolitana de BH, que se declara como adepto da política da tolerância zero. Ele se manifestou irritado com o atual condicionamento ao mito do ‘chefe bonzinho, do marido bonzinho, da sociedade boazinha’. Depois de marcar 14 minutos no relógio, combinados como o tempo determinado para a entrevista, deixou um pensamento sem conclusão para ser fiel ao cronômetro. Parece viver 24 horas sob pressão. Melhor encurtar a conversa, antes que o homem exploda do outro lado da linha.
‘Enlouqueci’
“Fui a uma festa de inauguração de uma casa noturna em BH. A proprietária era minha cliente e forneceu duas cortesias. O lugar estava bonito, todo decorado para a festa. Decidi levar uma amiga. Acontece que chegamos cedo demais. Ficamos esperando que a festa começasse. Sentamos na primeira mesa vaga e ficamos conversando. Entretanto, logo veio o garçom chamar a atenção de que o local estava reservado. Passamos para a mesa ao lado. De novo, ocorreu a mesma coisa. O garçom pediu para a gente se retirar. Sem falar nada, nós duas decidimos ir sentar no balcão. Eu pedi um refrigerante e ela pediu um chope. O pedido demorou a chegar. Fizemos sinal para o garçom, mas ele fingia que não estava vendo. Passado um bom tempo, levantei e resolvi pedir diretamente no caixa. Tive outra recusa, dizendo que o serviço da casa ainda não havia iniciado. Finalmente, começaram a chegar mais pessoas para a inauguração. Percebi que o serviço já estava funcionando e nada de a gente ser servida. Era um verdadeiro absurdo porque tínhamos sido as primeiras a chegar do lugar. Resolvemos levantar e ir embora, sem consumir nada. Na saída, o rapaz da portaria exigiu a comanda. Foi a gota d’água. Gritei: ‘Ah, é? Você quer a comanda? Então toma aqui!’ Piquei o papel em mil pedacinhos e joguei para o alto. Surgiram dois seguranças e agarraram meu braço. Enlouqueci. Encarei os dois brutamontes e berrei: ‘Tirem as suas patas de cima de mim!’. Ameacei relatar todo o ocorrido para a dona do local, que havia me enviado a cortesia. Eles mudaram o tom quando viram que eu realmente sabia o nome da proprietária. A situação se inverteu e eles começaram a ficar desesperados. No dia seguinte, eu já estava mais calma e apenas alertei a ela de que deveria ter mais cuidado ao orientar seus funcionários. Não me arrependo do que fiz, mas poderia ter tido outra atitude. Quando a bomba estourou, minha amiga foi embora e me deixou reclamando sozinha. Até hoje não gosto de me lembrar da situação.”
N., 63 anos, autônoma, Bairro Santa Lúcia
‘Vi surgindo as garras da onça’
“Aprendemos a nos defender nas cavernas, como dizem os antropólogos. Sempre digo que minha família veio de uma caverna onde tinha muito ataque de onça. Sou de família muito grande, de pessoas cordatas, que gostam muito de ler e de estudar, mas que quando se olha para um de nós e a pessoa está igualzinho Wolverine, com as unhas já aparecendo, você pode saber que a onça vai ser a maior que você já viu. Quando veem que a onça vai supitar, meus filhos alertam: ‘Mãe, cuidado com a onça! Mas, dependendo da situação, não adianta. Vou fazer um escândalo mesmo. Não controlo. Meu ataque mais recente foi em uma sexta-feira, quando comprei uma calça em uma loja na Savassi. Vesti a tal calça para ir a uma festa no sábado. Quando cheguei em casa, ela estava cheia de bolinhas entre as pernas. Na segunda-feira, fui lá mostrar a calça. Era época de Natal e a loja estava cheia. Procurei a gerente e ela falou: ‘A senhora há de convir comigo que esse defeito é de uso’. Ela não devia ter dito isso. Olhei para a minha mão e vi surgindo as garras da onça. Fiz um escândalo, um barraco! Chamei a atenção da loja inteira: ‘Ô gente, olhem para cá! Essa loja só vende m.! Todo mundo está olhando? Vocês acham que estou querendo essa calça? Quer saber o que vou fazer com essa calça? Olhei lá dentro e tinha uma lata de lixo na loja. Estou jogando fora essa porcaria de calça que não presta! A mulher olhava para mim com uma cara espantada e o povo dentro da loja não sabia o que estava acontecendo. O mais divertido é que aquilo me dá um alívio, me faz um bem… Nunca mais entrei naquela loja, nem comprei mais nada lá. É que a onça não vai embora. Ela fica ali, à espreita.”
B., 61 anos, funcionária pública
‘Acho que fui consciente’
“A maioria das pessoas tem vontade de enfiar a porrada, chutar o balde ou gritar, mas poucos assumem. Passei por uma situação de trânsito uma vez. Eu estava entrando com o carro no posto de gasolina, porém o pedestre estava passando e precisei esperar. O carro ficou com metade da traseira para fora, atrapalhando o trânsito na avenida de trás, que estava intenso. O carrão da madame que vinha atrás de mim começou a buzinar. A única coisa que fiz foi abrir o vidro e botar o dedo para fora, indicando um palavrão. Faltei ao respeito com ela, embora ela estivesse errada. Entrei no posto e parei na fila da ducha. Em vez de seguir o caminho, porém, a mulher veio atrás de mim, exatamente igual na cena do filme. Já desceu do carro estourada. Veio tirar satisfação comigo. A única reação que tive foi pedir desculpa porque, embora ela estivesse completamente errada, eu também tinha minha parcela de culpa. Amarelei para evitar uma coisa pior. Todo mundo que assistia a cena deve ter sentido que fiz algo errado porque ela era a dona da razão, xingando alto. Se eu tivesse confrontado, ela com certeza iria me bate. Se eu desse combustível, ela iria explodir o posto inteiro. Para todos, passei como covarde. Mas acho que
fui consciente”
T., 32 anos, advogado
INDICAÇÕES
Filmes, livros e vídeos recomendados pelas pessoas ouvidas na reportagem:
» Estaremos fazendo o cancelamento - Fabio Porchat, ator do humorístico Porta dos Fundos fica azul de raiva ao tentar negociar com a operadora de telemarketing
» Um dia de fúria - o filme de 1993 tornou-se sinônimo de colapso mental ao contar a história de William Foster (Michael Douglas), divorciado e desempregado. No Youtube, com o título Como negociar um refrigerante, o trecho em que o personagem perde a cabeça com a falta de troco é exibida em palestras para consumidores
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