Jornal Estado de Minas

Jovem supera barreiras impostas pela cegueira e acumula conquistas no esporte

Ana Luiza Martins de Freitas já acumula 22 medalhas de judô e golbol. Aos 18 anos, ela considera que alcançou a independência

Jaqueline Mendes

No tatame, a jovem alia força e técnica, mas tem consciência sobre pontos fracos - Foto: Leandro Couri/EM/D.A.Press



Um dia para não esquecer. Acompanhar a deficiente visual Ana Luiza Martins de Freitas, de 18 anos, é um aprendizado. Logo pela manhã, com satisfação, ela e a avó, dona Dalva, abrem a porta e o aconchego da casa pequena, no Bairro Novo Boa Vista, para a equipe de reportagem. Ana, filha da dona de casa Juliana Lina e do comerciante Benedito Martins, criança ainda, acompanhou com tristeza a separação dos pais. Desde os 8 anos passou a morar com os avós maternos em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. E é lá que a estudante vem somando vitórias – ainda maiores do que as representadas pelas 22 medalhas de judô e golbol já conquistadas. Em três anos de dedicação ao esporte, a estudante treina diariamente e participa de competições em várias partes do Brasil.

“Pegue lá as medalhas, minha filha”, sugere dona Dalva. Ana Luiza é cega de nascença.
De acordo com a avó, em função de rubéola que acometeu a mãe, Juliana Lina, durante a gravidez. A menina reconhece cada uma das premiações pelo tato. Conta histórias e fala da última viagem, quando caiu de mau jeito e teve que seguir de ambulância para hospital do Espírito Santo, interrompendo sua participação na competição de golbol. “Desde os 12 anos ela anda para todo lado sozinha. É muito inteligente, essa menina”, diz, sorrindo, a avó.

Ana Luiza gosta de conversar. Quer ser jornalista. Traz o notebook para mostrar o texto que escreveu à faculdade, reclamando maior cuidado com a inclusão. Passa pelas redes sociais e mostra software de áudio capaz de acelerar a “leitura”. Ninguém na sala, além dela, é capaz de entender uma só palavra do que diz a máquina. Parece uma língua embolada qualquer, daquelas que exigem estudo e dedicação desde o nascimento.

A moça conhece bem o braile. No entanto, admite que tem deixado a leitura pelo tato de lado depois que aprendeu a dominar tecnologias, como o Dosvox – um sistema desenvolvido pelo Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pensado para “conversar” com o usuário. Por meio do Dosvox, criado pelo professor José Antônio Borges, Ana Luiza pode fazer uso, sob a plataforma Windows, de mais de 60 utilitários.

PÉ NA ESTRADA

Papo bom, mas é hora de tomar o rumo de Belo Horizonte para os compromissos do dia. Dona Dalva, com a Bíblia nas mãos, agradece a visita e confia a neta querida à reportagem.
De carona, cinco minutos de estrada, Ana Luiza demonstra conhecer bem o caminho. “Gosto de passar pela BR-040. Melhor do que pela Avenida das Américas”, diz. Pelas curvas e lombadas, pelo cheiro e sons do ambiente, ela é capaz de reconhecer a maior parte dos trechos do itinerário. A habilidade sensorial impressiona.

“Este viaduto é bastante inútil, porque na saída dele os carros ficam presos no engarrafamento. É estreito. Não funciona”, avalia, deixando os acompanhantes boquiabertos em um trecho da Via Expressa. Mais adiante, no Barro Preto – que a estudante conhece bem, pelos tempos de Instituto São Rafael, especializado no ensino de portadores de deficiência visual –, um passeio a pé pelos quarteirões ilustra os obstáculos, que são muitos, a começar pelas calçadas irregulares, sem o menor padrão. Ana Luiza lamenta os recortes de pista tátil, que, para ela, “muito pouco auxiliam”.

Pausa para almoço


No self-service, a estudante e judoca conta com ajuda para fazer o prato e conseguir espaço à mesa. Não sem um esbarrão com o quadril em uma quina de madeira.
Rotina. Ana Luiza não se abala. Gosta da prosa, da condição de entrevistada. Espera que o pedaço da sua vida no noticiário, quem sabe, desperte a atenção de quem pode ajudar com providências. “É difícil viver em um mundo feito para a maioria. A vontade de vencer, de me superar, é o que me dá força”, ressalta. Para o paladar apuradíssimo, a comida é boa, bem temperada. Namoro? Não deu certo. Arranjou um moço, esportista, também deficiente, mas que, segundo ela, não queria avançar na vida. Resultado: ficou para trás.

Antes de encarar as aulas de jornalismo no Bairro Caiçara, na Região Noroeste de BH, há o treino de judô do outro lado da Via Expressa, no Carlos Prates. “Guarda e meia-guarda. É o que mais tenho que treinar”, constata. No tatame, há oito judocas – seis deles com alguma deficiência. As duas alunas-instrutoras não fazem feio. Ana Luiza, faixa azul, tem força e técnica. Dá trabalho para Patrícia Castilho, estudante de educação física e liderança da hora. “Ela não me dá trégua; me deixa exaurida”, diz Patrícia, sorrindo, depois do treino com a jovem atleta.

“Se conhecesse uma redação de jornal, penso que poderia imaginar melhor como é o jornalismo na prática”, sugere Ana Luiza, charmosa, ao fim dos treinos. E por que não? Na redação do Estado de Minas, no Bairro Funcionários, a estudante de comunicação conheceu editores, infografistas, diagramadores, fotógrafos e repórteres. Não desperdiçou a oportunidade de se apresentar, pensando no futuro. Na despedida, agradeceu a visita com a alegria de quem sabe enxergar com os olhos do coração.

Golbol/ Um esporte exclusivo


O golbol foi criado em 1946 pelo austríaco Hanz Lorezen e pelo alemão Sepp Reindle. Ambos buscavam reabilitar veteranos da Segunda Guerra que haviam perdido a visão. Nos Jogos de Toronto (1976), sete equipes masculinas trouxeram à luz a modalidade. Dois anos depois, o registro do primeiro Campeonato Mundial, na Áustria. Em 1980, na Paralimpíada de Arnhem, o golbol passou a integrar o programa paralímpico. No Brasil, a modalidade foi implantada em 1985. O primeiro campeonato nacional foi realizado em 1987. Em Pequim, em 2008, ocorreu a estreia da Seleção Masculina em uma paralimpíada.

Diferentemente de outras modalidades do gênero, o golbol foi desenvolvido exclusivamente para pessoas com deficiência. A quadra tem as mesmas dimensões da de vôlei – 9m de largura por 18m de comprimento. As partidas duram 20 minutos, com dois tempos. Cada equipe conta com três titulares e três reservas. De cada lado, um gol com nove metros de largura e 1,2 de altura. Os atletas são, ao mesmo tempo, arremessadores e defensores. O arremesso deve ser rasteiro e o objetivo é balançar a rede adversária. A bola, semelhante em tamanho à do basquete, tem 76cm de diâmetro e pesa 1,25kg. Carrega um guizo no interior que emite sons para que os jogadores se orientem.

 

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Um mundo pelo tato

Censo
Segundo dados do IBGE de 2010, no Brasil, mais de 6,5 milhões de pessoas têm alguma deficiência visual. Do total, 528.624 pessoas são incapazes de enxergar (cegos); 6.056.654 pessoas possuem grande dificuldade permanente de enxergar (baixa visão ou visão subnormal). Outros 29 milhões de pessoas declararam possuir alguma dificuldade permanente de enxergar, ainda que usando óculos ou lentes.

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