Jornal Estado de Minas

Conheca a história de perseverança de dois dependentes químicos

Na luta para se livrar do crack, dois casos de dependentes acompanhados pelo EM chamam a atenção pela persistência e capacidade de reconstrução de vidas

Jorge Macedo - especial para o EM
Guilherme Paranaiba e Sandra Kiefer

  Carlos e Priscila se preparam para o Natal - Foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press

CARLOS O hoje padeiro Carlos Ângelo Becalli, de 29 anos, viveu momentos de extrema degradação, chegando a viver como um bicho na Pedreira Prado LopesEle foi acompanhado pela reportagem quando já estava se tratando em uma comunidade terapêutica e as conversas transcorreram até ele conseguir o primeiro emprego, como segurança em um supermercado, já totalmente livre do crack.

Ao contar que está trabalhando em uma fábrica de pães há cerca de 10 dias, Carlos dá claros indícios de que sua vida estáno rumo certo e que o crack ficou no passadoO emprego no ramo da panificação, sonho da época que estava internado e aprendeu o ofício, não é a única razão do sorriso desse novo homemOutra explicação para tanta alegria é a vendedora Priscila Martins de Souza, de 26, companheira de CarlosOs dois dividem o segundo andar de um imóvel no Bairro Tupi, Região Norte da capital, há quatro meses, em companhia de Gabriel e Davi, os dois filhos de um relacionamento anterior de Priscila“Agora eu tenho uma família e estou pronto para realizar o sonho de ter a casa própria e também um filho”, conta ele.

Carlos e a reportagem do EM se encontraram em dezembro do ano passado, quando ele estava internado no Centro de Recuperação de Dependentes Químicos (Credeq)Logo que concluiu o tratamento ele iniciou o namoro com Priscila e não teve recaídaOs dois se conheceram em um supermercado, onde o casal trabalhou junto.  Carlos conta que desde então a situação melhorou ainda mais“Continuo frequentando as reuniões do pós-tratamento no CredeqA Priscila vai sempre comigoEsse é o diferencial

Me entreguei ao tratamentoEu realmente quis resolver o meu problema”, afirma

“O Carlos quis se tratar e eu estou totalmente disposta a ajudá-loSempre dei força e estamos formando nossa família”, diz a vendedora“Nossa expectativa é de um excelente NatalDia 24 vamos para a casa da minha tia e no dia 25 o almoço será na casa da minha sogra”, reforça eleAo pensar no que já viveu e comparar com a situação atual, ele toma um susto“É uma coisa inexplicávelLembrando o ponto em que cheguei, pensava que nunca ia conseguir largar o vícioMas eu via pessoas que conseguiram e perguntava: por que não eu?”, completa.

SANDRA A diarista Sandra Maria da Silva, de 43 anos, e a reportagem se encontraram quando ela já era acompanhada em reuniões dos Narcóticos Anônimos (NA) e estava livre do vício
Durante seis meses tentou vários empregos, mas não conseguiu se fixar em nenhum por causa do passado em cracolândias do Rio de Janeiro, São Paulo e MinasNo último contato, ela estava prestes a pegar um chaveiro por completar um ano longe das drogas.

Sandra sonha escrever um livro contando sua vida como ex-menina de rua, ex-prostituta e ex-usuária de crackEla estava aflita, no entantoCom muito custo, revelou que ainda não teve coragem de buscar o chaveiro, prêmio simbólico de um ano de abstinência dos Narcóticos Anônimos, apesar de estar sem usar drogas e álcool há um ano e quatro mesesConfessa ter medo de ficar orgulhosa e perder a força para lutar contra a dependência química“A adicção é uma doença que não tem curaSou uma máquina mortífera, movida a química, se eu ficar nervosa posso me tornar um carro desgovernado e bater em qualquer esquinaQuero ficar sóbria para ver bem a direção em que estou andando”, compara

Em agosto, depois de sair do último emprego e de fracassar na tentativa de montar uma barraca de churrasquinho, Sandra decidiu salvar suas duas irmãs, entregues ao crackCom o apoio do pastor Wellington Soares, da Igreja Batista da Lagoinha, conseguiu vaga para internar a diarista Vanessa, pela segunda vez no ano, e  Alessandra, que mora debaixo de um viaduto na companhia de um “noiado”.

Relembre o especial sobre crack


Com muita luta, Sandra conseguiu convencer Vanessa a se internarFez questão de levar a irmã até a porta do centro de reintegraçãoFeito isso, tentou o mesmo caminho com Alessandra, mas não teve êxitoEncontrou a irmã na Lagoinha, a levou para a igreja, mas enquanto ela preparava a documentação para a internação, Alessandra foi emboraSandra ficou arrasada“Se nem Jesus Cristo conseguiu salvar o mundo, não sou eu que vou conseguirPreciso tocar a minha vida e parar de sofrer pelas minhas irmãs”, desabafou



Ainda no meio das trevas


As situações mais complicadas entre os oito personagens reencontrados pelo EM são as do jardineiro Cleiton e da diarista SandraO primeiro viveu todo o período de acompanhamento nas ruas, usando crackA segunda abandonou um tratamento no interior do estado e continuou a fumar a pedra, jogando fora as chances de ficar bem para recuperar os filhos entregues a um abrigo.

CLEITON Cleneílson dos Anjos Fernandes, o Cleiton, mora há mais de cinco anos nas ruas, na região da LagoinhaO primeiro contato dele com a reportagem foi na fila de um sopão, depois de ter o corpo coberto de tinta por um desafetoRefutou inúmeras tentativas de tratamento, oferecidas pela família e por conhecidosAo fim do período de acompanhamento, continua fumando pedra, só que bem mais agressivo.

“Vem comigo para a internação, CleitonTem uma vaga esperando para que você possa sair das ruas agora”, convida mais uma vez a pastora Sandra Rondi, da Igreja Batista GetsêmaniEla não desiste de tentar resgatar da cracolândia da região da Lagoinha o ex-jardineiro, de 33 anos, há 11 viciado em crackSe ele aceitasse ajuda, seria levado para desintoxicação no Hospital Raul Soares, passaria por um período de internação em uma comunidade terapêutica e, em seguida, ganharia casa e emprego, dentro do conceito do projeto Ide!, criado há cinco anos pela pastora Sandra, com a colaboração dos seus filhos e de fiéis.

Entretanto, Cleiton é dos mais renitentes entre os dependentes atendidos pela pastoraEntra na fila do cachorro-quente com suco, ouve conselhos e súplicas, mas sempre bate em retiradaQuer uma vaga de internação, Cleiton? “Quero fumar pedra! Você quer me dar R$ 20?”, provoca o homemOs braços se agitam e ele está nervoso por ter saído nas páginas do jornal“Pensa que eu não vi? Eu estava aqui, desse jeito”, mostra ele, refazendo a posição da fotografia.

A companheira dele nas ruas, S., está grávidaCleiton pega ração em dobro para sustentar a família: dois sanduíches e dois sucos, que irá levar para a parceiraAmbos mudaram de ponto nos últimos mesesDeixaram o viaduto e se transferiram para o outro lado da passarela de pedestres, perto da Rodoviária“Aqui estão matando muita genteEstão de pilantragem”, diz Cleiton, que foge da morte, apesar de se consumir pouco a pouco no vício.

Vanessa A diarista Vanessa foi apresentada à reportagem pela irmã, Sandra, que tentava interná-la para tratar o vícioFoi enviada para se recuperar em Uberaba, pesando menos de 50kgNa primeira visita da família ela abandonou o tratamentoNão conseguiu se manter limpa para reaver cinco filhos enviados pela Justiça para um abrigo.

Num domingo, 3 de novembro, Vanessa ligou insistentemente para o celular da repórterInterurbano a cobrarA diarista não se lembrou de ligar para dar os parabéns à irmã, Sandra, que estava fazendo aniversárioSó queria mandar um recado: está voltando para casaPelas regras da instituição, ao completar quatro meses de internação quem está em tratamento tem permissão para visitar a famíliaDesde que a reportagem começou a acompanhar a trajetória de Vanessa, a doméstica já está na segunda internação no anoDa vez anterior, sofreu recaída ao ser enviada de volta, em visita à família.

Sandra foi alertada de que a irmã ameaçava interromper o tratamento se nenhum familiar aparecesse nas visitas de rotinaVanessa deu ultimato em 18 de novembroAo completar três meses da segunda internação, sem receber apoio dos parentes, desistiu do tratamento e foi emboraNa semana seguinte, comunicou que estava de volta“Desta vez, estou bemNão quero mais saber de drogasVou alugar o barraco da minha irmã, que está de mudança e mudar de vidaMas preciso de ajuda para arrumar um emprego”, clamou Vanessa num telefone público, falando altoNão houve como retornar o telefonema dela, que parecia estar desconectada da vida.

Memória: SEIS MESES NAS RUAS


Entre 12 e 15 de agosto, o EM publicou o resultado de seis meses de acompanhamento de 10 dependentes de crackEles foram divididos em três grupos, de acordo com o grau de dependência na drogaAqueles que estavam em um momento de uso abusivo, sem perspectiva de melhora, foram incluídos no grupo “trevas”Já os que buscavam alternativas para largar o vício, mas acabavam recaindo, alternando bons e maus momentos, formaram o grupo “sombras”Aqueles com boas chances, que se mantiveram longe do crack, foram colocados na categoria “luz”Por fim, o último dia trouxe a iniciativa do Ministério Público estadual de ajudar os personagens da série.